A lucidez do amor
A experiência do amor é trivial, afinal, é a experiência pela qual passa todo ser humano. Neste sentido, então, ninguém tem maior ou uma melhor experiência de amor. Portanto, é correto pensar que todos sabem o que é o amor e amar. Todavia, não é menos verdadeiro pensar que ninguém sabe ao certo o que é o amor e o amar.
Por que se está numa situação de impasse, então, convém partir de onde já se sabe a fim de chegar a algum lugar. Por isso, partiremos da certeza de que todos sabem o que é o amor e amar. Para tanto, lançaremos mão do seguinte: temos um corpo e somos um corpo. Com efeito, esta base biológica é condição para se amar, afinal, não amamos fora de nosso corpo, mas sim nele e através dele. Com isso afirma-se implicitamente que o corpo não é só a base, mas é a condição da espiritualidade, a qual, por sua vez, é a expressão máxima do amor. A espiritualidade abriga esta prerrogativa em si mesma, pois ela é, no ser humano, a esfera que se abre a transcendência. Com efeito, é na abertura à transcendência que o Outro aparece misteriosamente na relação de abertura ao outro na relação intersubjetiva. Em síntese, afirma-se que a espiritualidade mais simples a mais etérea que possa existir é necessariamente “encarnada”. Não se ama a Deus fora do corpo, mas no corpo. Não somos angélicos, mas evangélicos.
A marca da transcendência se inscreve no ser humano quando este se questiona sobre o sentido de sua vida, pois, até onde se sabe o animal não questiona sobre a sua vida e, muito menos, sobre o sentido dela. Aqui surge a dimensão do espírito.
A primeira resposta que surge ao ser humano é a de que ele padece de uma solidão inelutável. Ou seja, é a autopercepção de que não se pode apoiar-se num outro, o qual, em hipótese alguma, fará as coisas em seu lugar. Disso surge o medo da liberdade de se ser aquilo que se é diante de Deus e diante dos outros. O avançar na liberdade, ou seja, na superação do medo de se ser aquilo que se é adentra-se o campo da espiritualidade – no sentido forte do termo; o retrair diante disto é extinguir o espírito, ou ‘interditar’ a transcendência, é tornar-se, na bela e sutil expressão de Fernando Pessoa, um cadáver adiado.