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Discípulos e Missionários a partir do Evangelho de João

Publicado por Frei Moacir Casagrande | 02/07/2015 - 16:44

         “Permanecei no meu amor para dardes muitos furtos” (Jo 15,8-9).

 

Estes são tema e lema do mês da Bíblia celebrado em setembro por nossa Igreja no Brasil. Apreciaremos com mais profundidade o discipulado e a missão no quarto Evangelho.

Introdução. A iniciativa de dedicar um tempo especial à Bíblia no mês de Setembro se deve ao fato de que no dia 30 desse mês celebra-se São Jerônimo, a pessoa que traduziu a Bíblia do hebraico, do aramaico e do grego para o latim, deixando também muitos comentários bíblicos. Jerônimo, natural de uma região da Espanha que hoje é Portugal, foi a Roma por volta do ano 366 onde foi batizado e nomeado secretário do papa Damaso. Faleceu em 420 na cidade de Belém - Israel. O papa Damaso firmou a autoridade da Sé Apostólica, combateu o arianismo[1] com ajuda de Ambrosio de Milão e Jerônimo, que com ele muito contribuíram para a difusão do verdadeiro cristianismo.  Desejava oferecer aos fieis um maior conhecimento da Palavra de Deus e também uma maior divulgação da mesma. Jerônimo tem colaborado particularmente neste aspecto.

No Brasil, por ocasião da celebração dos seus 50 anos, a Arquidiocese de Belo Horizonte teve a iniciativa de fazer estudos, leituras, orações e divulgação da bíblia, entre os fiéis. A iniciativa foi assumida pelo Serviço de Animação Bíblica que, a partir desse evento, foi avançando pelas dioceses do Brasil e exterior, até ser acolhida por todas as dioceses em 1985. Desde 2012, inspirado no Documento de Aparecida o tema tem se centrado nas narrativas evangélicas, sendo que em 2012 tratou do discipulado e da missionariedade segundo Marcos, seguido de Mateus em 2013, Lucas em 2014, e agora João em 2015.

Como a comunidade de João apresenta o discipulado e a missão na narrativa do Evangelho? Numa rápida comparação a diferença salta aos olhos. Para começo de conversa, em toda a narrativa de João temos apenas uma[2] pessoa chamada por Jesus, ao seu seguimento. Esta pessoa é Filipe (Jo 1,43). Jesus, porém, acolhe dois que o procuram (Jo 1,38-39), enviados por João Batista (Jo 1,35-37). Acolhe também Natanael que lhe é apresentado por Filipe (Jo 1,45-48). Em nenhum lugar João apresenta a lista dos Doze.

Um Chamado corresponsável. No discipulado de Jesus, segundo João, ele acolhe e partilha a responsabilidade com povo. As pessoas que conhecem Jesus tem a responsabilidade de encaminhar outras para que se façam discípulas dele.  Assim poderíamos dizer que a primeira missão de quem conhece Jesus é apontá-lo a outras pessoas. Por quê? Porque o discipulado só pode ser feito com ele. Jesus não precisa chamar, mas precisa acolher os enviados a ele e certificar-se do interesse dos mesmos. Isso deixa claro que não há discipulado sem convivência com Jesus e não há missão sem discipulado. Evidencia-se então, a centralidade da vida em comunidade, pois é nela que se exercita o amor mútuo, a verdadeira caridade. Quem foi chamado e conviveu com Jesus, tem o dever de chamar e enviar ou levar ao encontro de Jesus, isso é prova do verdadeiro discipulado.

O cultivo da comunhão com o enviante. Outra significativa diferença se encontra no verbo usado por Jesus, segundo a comunidade joanina, para caracterizar o envio dos missionários. O envio em João acentua a origem da missão.

Os evangelistas, Marcos, Mateus e Lucas gostam de usar o verbo “apostello[3]para tratar do envio, enfocando a missão. Este verbo é usado para acentuar o objetivo especial e particular do envio. Trata-se do para que? O importante é saber qual é a missão do enviado. Nesse caso não interessa tanto quem manda, nem quem é o mandado, mas o encargo, a ação, para a qual a pessoa é enviada a desempenhar.

João, por sua vez, lança mão do verbo “pempo[4]. E não por acaso. É uma questão intencional, ele quer responder à pergunta: enviado de quem? Este verbo é usado para acentuar a origem da missão que está no enviante, bem como a transmissão do cargo. O Pai enviou, transmitiu, encarregou seu filho Jesus. Nesse caso se destaca o Pai, pois é ele quem envia e não outro qualquer (Jo 5,37.43). Quanto mais importante for quem envia, mais importante será o enviado. Assim, não e suficiente que a pessoa fique focada naquilo que ela foi mandada fazer, mas ela precisa ter sempre presente a vontade daquele que a enviou. Ela nunca desempenhará bem a missão se não cultivar constante contato com o enviante. O enviado só será fiel se mantiver constante comunhão com o enviante. Se ele se isolar no encargo ou na tarefa recebida pode perder o dinamismo da fonte inspiradora, cair na rotina e/ou virar impostor. Creio que aqui esteja a explicação para tanto cansaço e estresse no apostolado de hoje. Isto acontece pela perda do dinamismo do Espírito que brota da ligação com o enviante. A leveza é dada pelo Espírito Santo, a morosidade pela ausência dele.

Tanto “apostello”, quanto “pempo” são traduzidos por ENVIAR e MANDAR, mas em sua origem, tem significados diferenciados. É claro que a pessoa enviada ou mandada está a serviço de quem a envia ou manda e age também na responsabilidade de quem mandou. Rejeitar essa pessoa é rejeitar aquela que a enviou. “Quem vos ouve a mim ouve, e quem vos rejeita a mim rejeita, mas quem me rejeita, rejeita aquele que me enviou” (Jo 12,48 e Lc 10,16). Por outro lado Jesus também diz: “Em verdade, em verdade vos digo, receber aquele que eu enviar é receber a mim mesmo e receber-me é receber aquele que me enviou” (Jo 13,20; Mt 10,40). Observe-se que, embora estas afirmações estejam presentes em outros evangelistas, elas são mais constantes em João. Ai Jesus insiste em mostrar que sua missão tem origem no Pai e só se sustenta na comunhão com o Pai, mas deixa claro que apresentá-la aos outros faz parte da fidelidade ao Pai (Jo 5,37-44). Assim, quem ama Deus Pai, acolhe Deus Filho, não só, também apresenta o Filho aos outros.

Alguém é enviado sempre com um encargo, para um serviço, que chamamos de missão. Para nós, a missão tem um sentido profundamente religioso. Não se trata só de cumprir mandatos e prestar serviços. Trata-se de colocar-se na pele de quem envia e assumir o encargo ou serviço em comunhão com aquele que envia, em favor dos destinatários do envio. Assim, o missionário não só assume o serviço de Jesus Cristo, mas assume também o próprio Jesus Cristo com sua missão, no serviço que vai desempenhar. A missão que alguém desempenha em nome de Jesus tem sempre o efeito na história, mas sua fonte é o Pai, e o destino final a eternidade.

O exemplo de Jesus. Em João Jesus insiste em se mostrar discípulo fiel do Pai. “Eu desci do céu não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou. E a vontade daquele que me enviou é esta: que eu não perca nada do que ele me deu, mas o ressuscite no último dia” (Jo 6,38-39). Fidelidade esta levada às últimas consequências na plenificação da vida que a ressurreição.

Anteriormente Jesus já havia advertido para o propósito positivo de Deus Pai e sua fidelidade a ele. “Por mim nada posso fazer: eu julgo segundo o que ouço, e meu julgamento é justo, porque não procuro a missa vontade, mas a vontade daquele que me enviou” (Jo 5,30). Na verdade ele mesmo explica: “Deus não envio o seu Filho ao mundo para julgar o mundo, mas par que o mundo seja salvo por ele” (Jo 3,17). Mais adiante ele insiste: “Se alguém ouvir minhas palavras e não as guardar eu não o julgo, pois não vim para julgar o mundo, mas para salvar o mundo” (Jo 12,47). Salvar o mundo é a vontade do Pai e, por isso mesmo, a missão de Jesus. Condenar não consta na missão do Filho, nem deve constar na nossa.

Glorificar o Pai. Segundo João, Jesus ainda insiste em outra vertente da missão que é a glorificação do Pai. Assim, a salvação do mundo não é só um bem para o mundo, para as criaturas, mas também para o criador. Salvar o mundo é glorificar o Pai. “Aquele que procura a glória de quem o enviou é verdadeiro e nele não há impostura” (Jo 7,18). Quem como Jesus atua em favor do Pai, não busca ser reconhecido, elogiado e condecorado, mas procura levar os outros ao reconhecimento da bondade e misericórdia de Deus. Grande desafio para quem tudo faz em busca de reconhecimento, recompensa e glorificação pessoal.

Por isso João foca sua narrativa na realização da VONTADE DO PAI (Jo 5,30 e 6,38-40). A vontade do Pai é a missão de Jesus e ponto. “Meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e completar sua obra” (Jo 4,34). E continua: “Minha doutrina não é minha, mas daquele que me enviou. Se alguém cumprir sua vontade, reconhecerá se minha doutrina é de Deus ou se falo por mim mesmo” Jo 7,16-17. Ora, é impossível focar a missão na vontade do Pai sem estar em constante comunhão com Ele. Ai reside o valor e a necessidade do cultivo da dimensão orante na vida do discípulo/a e missionário/a de Jesus Cristo. O/a missionário/a não se sustenta sem este exercício de comunhão.

Permanecer. Outro importante destaque está no poder de envio. Os sinópticos insistem na “exousia” = poder, destacando a obras de resgate, tais como: expulsar espíritos impuros, curar doenças e enfermidades (Mt 10,1; Mc 3,15), mas João insiste no “menein” = permanecer e no “ágape” = amor oblativo. Segundo João o poder de evangelização está no testemunho de comunhão com Jesus e com os discípulos de Jesus. O principal argumento da evangelização é amor gratuito praticado na convivência.

A palavra grega menein é traduzida comumente por ficar, também por morar, mas a tradução mais exata é permanecer[5]. Ela tem um significado muito importante no Evangelho segundo João[6]: 67 das 79 vezes que ocorre no Segundo Testamento esta nos escritos de São João. Permanecer é fazer algo que favoreça o estar juntos; estabelecer morada, conviver, partilhar, colocar-se em comum. Permanecer é a melhor expressão da vida em comunidade. Segundo João (15,1-17) só produz frutos quem permanece em Cristo. Segundo Marcos 3,14 Jesus constituiu doze para quepermanecessem com ele e para enviá-los a pregar”. Em Lucas 19,5 Jesus disse a Zaqueu que precisava “permanecer na casa dele”. Zaqueu o acolheu e mudou de vida (19,8). Em Emaús, primeiro Jesus se ofereceu para caminhar com eles, agora são eles que oferecem seu espaço, pedem a permanência de Jesus (24,31-35).

Permanecer, conviver, com Jesus faz a diferença, é caminho de duas mãos. Ele quer permanecer, conviver conosco, mas também nós precisamos querer permanecer com ele. Este é um dom e um desafio. Assumindo o desafio construímos e experimentamos o dom.

Permanecer como e para que? Neste sentido é paradigmática a alegoria da videira (Jo 15,1-17). Somente nesta pericope a palavra “permanecer” aparece onze vezes[7]. A VIDEIRA que foi símbolo de Israel (Sl 80,9; Is 5,1-7; Jr 2,21; Os 10,1), em João apresenta-se como o novo povo de Deus. Insiste em mostrar como esta nova comunidade se relaciona com Deus no meio do mundo, o texto pode ser estendido até 16,33. A videira antiga, Israel, foi infiel e por sua infidelidade persistente, destruída. Não foi Deus que a destruiu, foi a própria infidelidade que a implodiu. A nova videira é formada e cultivada em torno do Messias = Jesus Cristo. Ele é a videira verdadeira e nele prevalece a eternidade. Ele é a videira obediente ao Pai, que nele permanece e produzirá muito fruto.

Fruto era o que Javé esperava de Israel, mas só obteve alguns, e estes, intragáveis (Jr 2,21). Fruto é o que a nova comunidade precisa produzir (15,2-4.8.16). Ela poderá ser bem sucedida se permanecer em Jesus, se deixar que Jesus a pode/cultive, se responder positivamente à escolha=chamado de Jesus, se permanecer no envio de Jesus. Isso acontece na via da doação, da vida alimentada no amor ágape (15,10-11). A glorificação do Pai acontece pela produção de frutos/obras. A primeira delas é o amor mútuo (15,8.12). Ela não somente precisa produzir frutos, mas produzir (muitos) frutos em abundância (15,2.4). Isso só acontece pela comunhão com Jesus (15,5) e pela aceitação da poda (15,2), feita pelo Pai, nos ramos que somos nós. Pelo Pai sim, porque Jesus, o Filho, nem corta e nem poda, pois não foi para isso que ele veio.

O ramo que não produz fruto é insensato/rebelde com a seiva que recebe, só consome, não multiplica, por isso será arrancado, mas aquele que produz fruto é limpado/podado. A poda é fator de limpeza das impurezas para favorecer ao máximo a missão, isto é, a abundância. A seiva/vitalidade da nossa vida depende absolutamente da comunhão com Jesus, assim como Jesus nos diz ter com o Pai. Isto evidencia que a fonte não somos nós, é Deus e que nos somos chamados, na verdade a exercer uma parceria.

Na alegoria da videira a nova comunidade não se sustenta por si mesmo. Ela não depende de instituição, mas da participação na vida de Jesus, da comunicação do seu Espírito. É uma luz importante que se acende: A comunhão das criaturas depende do cultivo da verdadeira comunhão com o Criador. Esta não é apenas uma tarefa, é o jeito de viver o Reino de Deus. Se não conseguimos comungar entre nós é porque a nossa comunhão com Deus está falha.

A missão é produzir frutos em abundância (Jo 15,8). Isso coresponde a vida em abundância (J0 10,10). Assim como o Filho=Jesus corresponde ao Pai em sua missão, assim o/a discípulo/a corresponde, em sua missão, ao Filho Jesus.  A alternativa ao mundo opressor, que se basta a si mesmo, é a sociedade do amor mútuo, expressão de vida e ambiente de liberdade, aberta para alcançar a humanidade inteira[8] e porque não, toda a criação.

Jesus realiza os mandamentos do Pai, expressando seu amor para com ele. Os discípulos realizam os de Jesus, recebidos do Pai, expressando seu amor para com Jesus, permanecem assim, vinculados ao Pai.

Este novo modo de expor a relação entre o Pai, ele e os discípulos tira toda a ambiguidade ao vínculo expresso antes sob a figura da videira. Ela se realiza mediante um amor que é resposta ao seu amor; “Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi e vos designei para irdes e produzirdes fruto, e para que o vosso fruto permaneça” (Jo 15,16). Jesus exclui expressamente o amor e a adesão centrados na própria pessoa. Trata-se de uma amizade que chega ao ponto de dar a vida por seus amigos. E não só pelos amigos, mas por todos, e não por um momento apenas, mas para sempre (Jo 13,1.26; Mc 14,24) Os discípulos não são assalariados, contratados para realizar trabalho mediante recompensa, são amigos que aderem livremente à proposta de Jesus, compartilham de sua alegria, de sua intimidade e de sua própria missão[9].

Uma agenda positiva; O evangelista João, mais que os outros, insiste numa agenda positiva de Jesus, por isso, mais que dizer o que não lhe cabe, estabelece foco no que lhe cabe. Eu vim para que as ovelhas tenham vida e a tenham em abundância" (Jo 10,10). Esta é das afirmações mais provocativas do evangelho segundo João e de todas as narrativas, com consequências de grande importância para todos os cristãos.

Aos entendidos em bíblia e messianismo Jesus diz: Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não andará nas trevas, mas terá a luz da vida(Jo 8,12). Mais adiante, próximo a sua páscoa precisa retomarEu vim como a luz do mundo para que todo aquele que crer em mim não fique nas trevas(Jo 12,46).

Em discussão com os fariseus sobre a cura de um cego de nascença afirma: Vim a este mundo para fazer uma discriminação: os que não veem vejam e os que veem tornem-se cegos(Jo 9,39). Na hora da paixão, do sofrimento que o conduz à morte, Jesus diz: “... Pai livra-me desta hora! Mas é exatamente para isso que vim para esta hora(Jo 12,27).

Na hora do julgamento diz: “Para isso eu nasci, para isso vim ao mundo, para dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz(Jo 18,37). Esta afirmação forte e incisiva confundiu o procura­dor romano Pôncio Pilatos no julgamento de Jesus. Pilatos está constituído em autoridade para fazer valer o direito e a justiça, mas, ironicamente, não sabe o que é a verdade (cf. Jo 18,38).

Para aqueles que veem Jesus como uma ameaça e rejeitam seus ensinamentos ele diz: “E, se alguém escuta minhas palavras e não as guarda, não o julgo eu, porque não vim para julgar, mas para salvar o mundo” (Jo 12,47). Este assunto muito atual esclarece que Deus não é terrível. A condenação não vem dele, mas vem das atitudes que tomamos frente à palavra dele. Portanto, não é Deus, nem é Jesus que nos condena. Somos nós mesmos que nos condenamos. Que dizer então dos pretensos pastores que ficam acentuando a condenação mandando o povo para o inferno?

Está claro, portanto, que a missão de Jesus ultrapassa todos os limites das expectativas e quebra todas as estruturas montadas pelos entendidos. Para dar vida em abundância ele leva a Lei ao pleno cumprimento.  Amor oblativo é a sua lei. Inverte a ordem de importância da organização social. Torna nulo todo o sistema judiciário-religioso dos méritos e dívidas. Dá primazia à busca dos marginalizados e excluídos da sociedade do tempo. É particularmente nesse ponto que o comportamento de Jesus se torna muito diferente daquilo que os líderes religiosos e políticos esperavam.

O Evangelho dos verbos: Crer e Amar, Testemunhar. Duas atitudes, segundo João, são fundamentais para o cristão. Nenhum escritor do Segundo Testamento insiste tanto nelas quanto ele. João fala do amor como substantivo apenas sete vezes no seu evangelho, mas fala 21 vezes em suas cartas onde diz que: “Deus é amor e quem permanece no Amor, permanece em Deus e Deus nele” (1 Jo 4,16). Ele fala pouco do amor, mas não para de insistir na necessidade de amar. Quase a metade das vezes que esse verbo aparece no Segundo Testamento está em João (67 das 141 vezes).

Outra grande exigência é a atitude de fé. É muito interessante notar que ele nunca fala de fé, como substantivo, em seu evangelho e em todas as suas cartas só fala uma vez (1 Jo 5,4). Mas é exatamente ele que mais usa o verbo crer (107 das 214 vezes que ele ocorre no Segundo Testamento).

Isso mostra que, para João, o que interessa mesmo é a ação e não as coisas ou interessam as coisas em ação, isto é, dinamizadas. Por exemplo: para João, não interessa a fé em si. O que interessa é a prática da fé. Interessa a fé manifestada em obras na vida da pessoa e da comunidade. Para João, também, pouco interessa o amor no passivo, o importante para ele é amar, manifestar o amor em gestos concretos na vida.

Amar e crer, crer e amar caracteriza o “testemunho”. A palavra testemunho ocorre em João 30, das 37 vezes que aparece no Segundo Testamento (mais de 80% em João). Enquanto o verbo testemunhar ocorre em João 47 das 76 vezes que aparece no Segundo Testamento (mais de 60%). Ele abre o evangelho colocando João Batista com a missão de testemunhar a luz (Jo 1,7-8.15.19.34), continua colocando Jesus como Testemunha do Pai (Jo 3,11) e do Reino (Jo 18,25). As obras de Jesus testemunham que o Pai está com ele (Jo 3,13-18; 10,25). Mas Jesus também testemunha contra o mundo (Jo 7,7). O que interessa à comunidade joanina é agir como Jesus Cristo, comprometer-se com a causa dele e não só saber o que ele ensinou e falar disso aos outros. O escritor, apóstolo, é testemunha do que escreve (Jo 21,24-25). Assim também na primeira carta (1 Jo 1,1-4) e no Apocalipse (AP 1,1-2)[10]. Discípulos/as e missionários/as de Jesus precisam ser testemunhas. Evangelizar para a comunidade joanina é, acima de tudo, testemunhar.

A Fraternidade: resultado do amor ágape. “Eu vos dou um mandamento novo: amai-vos uns aos outros. Como eu vos amei, amai-vos também vós uns aos outros. Nisto conhecerão que sois meus discípulos: no amor que tiverdes uns pelos outros” (Jo 13,34-35; cf.15,12.17; 1 Jo 3,11.23; 4,20-21). Em João o verdadeiro amor se revela na convivência, na partilha e no serviço comunitário. Esta é a fonte inspiradora e nutridora da comunidade, dai se origina o testemunho que precisa ser oferecido.

A vinda de Jesus prova que o Pai ama apaixonadamente o mundo que criou (Jo 3,16.35; 13,1 e 14,3). Jesus é fiel a este amor até as últimas consequências. Assim como o amor do Pai pela humanidade passa por Jesus, também o amor da humanidade para com o Pai passa por Jesus (Jo 8,24; 10, 17; 14,21.23; 15,9-10). Para que isso fique bem claro diz: “Se alguém disser amo a Deus, mas odiar seu irmão é mentiroso, pois quem não ama o irmão a quem vê não pode amar a Deus a quem não vê” (1 Jo 4,20).  Para a comunidade joanina a fidelidade à obra de Jesus passa pelo “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (cf. Jo 13,34-35). Ou o amor é algo bem concreto, palpável, ou não existe. O comportamento de Jesus revela isso. Alias, é necessário acentuar na declaração de Jesus que é um “novo mandamento” (Jo 13,34). Então, qual é o velho? O velho é “Ame o próximo como a ti mesmo” (Mc 12,31). O novo muda o referencial, não é mais o meu amor por mim, mas o amor de Jesus por mim que conta, que ilumina minhas ações. Até hoje continuamos uns discípulos agarrados ou perdidos no mandamento velho e queremos nos beneficiar do novo. Assim não dá, não vai, não decola. Só um ser humano é referencial do amor puro de Deus: Jesus de Nazaré e ninguém mais.

A comunidade cristã (Igreja) é a que se engaja na dinâmica do amor divino vivido, testemunhado, por Jesus (Jo 13,34; 15,12.17; 17,22-26). A Igreja é, portanto uma comunidade na qual todos os membros vivem uma relação de amor que se revela na partilha de bens e de dons, no servir uns aos outros. O discípulo amado é exemplo (Jo 13,23; 19,26; 20,2; 21,7.20). Este amor se expressa muito concretamente na atitude de Jesus para com Marta, Lázaro e Maria (Jo 11,3.5). Ele exige esse modo de vida dos discípulos (Jo 14,15.28) e particularmente de Pedro (Jo 21,15-17). Vê-se ai, que a liderança é exercida no amor e por amor. O mandamento do amor desafia profundamente a organização, as estruturas e a vida de nossas comunidades de consagrados e consagradas e nossas Igrejas.

O Espírito Santo, Paráclito. Outro importante destaque no discipulado e na missão, segundo João, é a presença do Espírito como Paráclito: advogado, consolador. O termo é exclusivo de João (14, 16.26; 15,26; 16,7 e 1 Jo 2,1). Quem é Paráclito segundo João? É o próprio Espírito Santo como presença pessoal de Jesus entre os cristãos, enquanto Jesus está com o Pai. O Pai concede o Paráclito a pedido de Jesus (Jo 14,16), mas o Pai dá o Espírito Santo aos que lho pedem (1 Jo 3,24; 4,13).

Algumas funções básicas do Espírito Santo como a regeneração batismal, a nova criação e o perdão dos pecados (Jo 3,5 e 20,22-23) nunca são atribuídas ao Paráclito. Na realidade, colocando em destaque apenas certos aspectos da obra do Espírito Santo e colocando-os no contexto do discurso da despedida de Jesus, o autor do Evangelho concedeu o Espírito em modo muito singular, tão específico que lhe deu o título de “Paráclito”. Salientamos que, em todas as passagens onde se fala do Paráclito, há uma verdadeira identificação com Espírito Santo.

Os textos específicos que em João dão ao Espírito o nome de Paráclito são os que revelam semelhança entre a ação do Espírito e a de Jesus. Virtualmente, tudo o que se diz do Paráclito, foi dito de Jesus[11].

1º) A vinda do Paráclito é como a vinda de Jesus (4, 43; 18,37). O Paráclito procede do Pai como Jesus. O Pai dará, mandará o Paráclito (14,16.26; 3,16-17). O Paráclito vem em nome de Jesus, como Jesus veio em nome do Pai (15, 26; 16,5-14; 5,43).

2º) O Pai vos dará outro Paráclito (Jo 14,16). O primeiro Paráclito é Jesus, em seu ministério terreno. Se o Paráclito é o Espírito da verdade, Jesus é a verdade (14,16.16-17). Se Paráclito é o Espírito Santo, Jesus é o Santo de Deus (6,69).

3º) Os discípulos têm o privilégio de conhecê-lo, como tiveram o privilégio de conhecer e reconhecer Jesus (14,7-9.17). O Paráclito permanece com os discípulos como Jesus (14,20-23; 15,4.5; 17,23.26). Ensina os discípulos como Jesus (6,59; 7,14.18; 8,20; 14,26; 15,26). Declara aos discípulos as coisas futuras, como Jesus que, sendo o Messias, anuncia todas as coisas (4,25-26; 16,15).

Em João fica evidente que todo o testemunho e o ensino do Paráclito, diz respeito a Jesus, de modo que o Paráclito glorifica Jesus (16, 13-14), o mesmo  que Jesus faz a respeito do Pai (8,28; 12,27-28; 14,13; 17,4).

Por que João fala do Espírito assim? Primeiro, por causa da confusão causada pela morte das testemunhas oculares (apóstolos), que eram a corrente viva entre a Igreja e Jesus de Nazaré. O quarto evangelho quer demonstrar a real ligação entre a vida da Igreja ao final do primeiro século, e o já remoto, Jesus de Nazaré. O Paráclito resolve este problema, guia todas as gerações a enfrentar novas e futuras situações (16,13). Segundo, por causa da angústia provocada pela demora da segunda vinda. João mostra que muitos dos sinais associados à segunda vinda, já estão presentes na vida cristã. De modo muito real, Jesus voltou durante a vida de seus discípulos. Veio pelo Paráclito. O Paráclito desfaz os mitos de muitos motivos básicos da apocalíptica, inclusive o juízo do mundo (16,11). O cristão não precisa viver com os olhos constantemente voltados para o céu esperando que venha o Filho do Homem, porque ele (Paráclito=Jesus) já está presente em todos os crentes.

Jesus usa o conceito “Paráclito” para justificar a audácia de sua proclamação. Se há, no quarto evangelho, concepções que vão além do ministério de Jesus, ele já havia predito e enviado o Paráclito, o Espírito da Verdade, para guiar as comunidades, precisamente nessa direção. Por sua vez, o Paráclito não apresenta nada de novo, simplesmente interpreta, esclarece o que procede de Jesus (16,13-15; 14,26).

O envio em João.  Como nos Sinóticos, também em João Jesus ressuscitado envia, mas este envio é feito de modo diferente. Estando eles reunidos (no cenáculo) de portas fechadas, por medo dos judeus, Jesus entrou, colocou-se no meio deles e disse: “A paz esteja convosco!” Mostrou-lhes as mãos e o lado, em seguida repetiu: “A paz esteja convosco!” “Como o Pai me envio também eu vos envio”. Depois destas palavras soprou sobre eles e disse: “recebei o Espírito Santo”.  Àqueles a quem perdoardes os pecados, serão perdoados: àqueles a quem retiverdes, serão retidos (cf. Jo 20,19-22).

Aqui é Jesus que vai ao encontro deles em Jerusalém, nada de Galiléia. Insiste no dom e no exercício da paz “entre eles”.  A primeira saudação tem a ver com o discipulado: paz na relação com Jesus. A segunda tem a ver com o apostolado: paz com os destinatários da missão de Jesus. O que liga as duas saudações é o “convosco”. Tanto para o discipulado quanto para o apostolado é fundamental a harmonia, o entendimento e a mútua confiança na comunidade. O augúrio de paz corresponde à missão de reconciliar que vão receber no final desse encontro. Para reconciliar os outros, é necessário cultivar o espírito de paz.

Ele envia os discípulos da mesma forma que foi enviado pelo Pai, na mesma missão. Assim ele passa aos discípulos aquilo que ele mesmo recebeu. A missão deles tem origem no Pai, como a de Jesus. Eles são inseridos na missão de Jesus para dar-lhes continuidade.  O dado mais especial é que Jesus lhes dá o Espírito Santo imediatamente. Diferente de Lucas, a promessa é realizada imediatamente após a ressurreição.

O destaque da missão é o perdão dos pecados, que em Mateus, está ligado a Pedro (Mt 16,19) e a Igreja (Mt 18,15-18). A missão, portanto, em João, tem foco na reconciliação. Isto evidencia a centralidade das relações em vista de uma convivência harmoniosa de irmãos, filhos do mesmo Pai, adotados por Jesus. Não há como reconciliar-se e reconciliar sem cultivar a paz.

O pastoreio centrado no amor ágape. Por fim, depois do desjejum (café da manhã) à beira mar, na Galiléia, preparado por Jesus, Pedro é questionado no ponto sem o qual não poderá liderar. “Tu me amas mais do que estes?” (Jo 21,15) Pedro, sempre pronto a responder não reflete sobre o sentido da palavra e por isso mesmo não responde o que lhe foi perguntado e sim o que acha que deve responder. Jesus lhe pergunta sobre o amor decidido, de entrega gratuita total = ágape e Pedro responde sobre o amor afetivo de reciprocidade, isto é de amizade=filia.

Sem amar a Jesus com o amor de Jesus, mais do que outros, o amor aos outros não se sustenta, nem persevera, pois a fonte do amor é o Pai e a ligação com o Pai é Jesus. Sem amar como Jesus o zelo de pastor não prevalece e a entrega pelos necessitados fica muito fragilizada, ligada a conveniências.

Tem mais um detalhe: a liderança no pastoreio precisa ser exercida sem busca alguma de compensação. Eis a razão de Jesus dizer a Pedro: “Em verdade, em verdade te digo: quando eras jovem tu te cingias e andavas por onde querias; quando fores velho, estenderás as mãos e outro cingirá e te conduzirá para onde não queres” (Jo 21,18). Depois de dar tudo de si e necessário dar a si mesmo, despojadamente, de modo a se deixar serenamente conduzir por outros. Esta orientação é de crescente importância para uma VRC cada vez mais envelhecida, cada vez mais necessitada de ajuda. A acolhida da ajuda sem murmuração é fundamental para uma vida serena até o fim.

Certa ocasião visitei uma irmã idosa e doente que estava sobra uma cama já a mais de um ano. Ele me disse: “Me dei toda a Jesus e veja como ele me deixou aqui”. Esta sensação de não correspondência dói mais que a própria doença e a idade avançada. Por isso Jesus convoca Pedro, e nele a todos/as nós ao amor sem medida.

Concluindo. Convém acentuar importante destaque da expressão missionária que temos em João 20,21: “A paz esteja convosco. Como o Pai me enviou (apostellein) assim também eu vos envio (pempein)”. No envio de Jesus pelo Pai, acentua-se a obra que Jesus deve realizar. Mas no envio dos discípulos, por Jesus, acentua-se a relação que estes precisam cultivar com Jesus e consequentemente entre eles mesmos e com aqueles para os quais foram enviados. É assim que João fecha sua narrativa.

Deus não nós envia para fazer sucesso, mas para viver a justiça na caridade. Fazer sucesso não é garantia de fidelidade, mas o sucesso verdadeiro é ser fiel ao Senhor e à sua missão custe o que custar. A fidelidade vivida na gratuidade é a marca da novidade.  

 

Questões:

1 - Olhe para a proposta de discipulado em João, compare com a tua experiência e de tua congregação, tire conclusões práticas.

2 - Veja como a missão segundo o evangelho de João pode ser atuada na tua realidade, hoje?

3 – O que há em comum entre o discipulado e a missão em São João e a Vida Religiosa Consagrada?




 


[1] Arianismo é a doutrina iniciada por Ário em 319. O sacerdote de Alexandria ensinava que Jesus foi a criatura mais perfeita de Deus, mas que não era Deus. Negava, portanto, a consubstancialidade entre Jesus e Deus. Ário foi condenado no concilio de Alexandria em 321, mas sua doutrina perdurou ainda por muitos anos.
 

[2] Jesus também chama Lázaro para fora do túmulo Jo 11,43, mas neste caso pode caracterizar o poder de libertação que Jesus possui e o de comprovação que Lázaro vai oferecer. De fato, em Jo 12,10 as autoridades decidiram matar também Lázaro.
 

[3] O verbo mais usado no Novo Testamento para falar de missão é apostello. Está presente 131 vezes. Sendo usado pelos evangelistas: Mateus 22 vezes, Marcos 20 vezes e Lucas 56 vezes.
 

[4] Em seguida temos o verbo pempo com 79 vezes. Este é o preferido do evangelista João. Ele usa 32 vezes: 1,22.33; 4,34; 5,23.24.30.37; 6,38.39.44; 7,16.18.28.33; 8,16.18.26.29; 9,4; 12,44.45.49; 13,16.20; 14,24.26; 15,21.26; 16,5.7; 20,21. O evangelista Lucas usa o verbo pempo 21 vezes.
 

[5] Permanecer é favorecer a continuidade da convivência, trata-se de algo dinâmico que implica sempre empenho de quem participa da relação. Ficar é hoje entendido como algo absolutamente transitório especialmente se aplicado às relações. As pessoas não estão mais permanecendo, mas só ficando. Isso afeta também o miolo da Vida Consagrada e da Igreja como um todo.
 

[6] A palavra grega ménein traduzida por permanecer ou ficar, aparece 52 vezes nos Evangelhos, 40 das quais no evangelho segundo João: Jo 1,32.33.38.39; 2,12; 3,36; 4,40; 5,38; 6,27.56; 7,9; 8,31.35; 9,41; 10,40; 11,6.54; 12,24.34.46; 14,10.17.25; 15,4.4.5.6.7.9.10.16; 19,31; 21,22.23. As outras ocorrências estão em Mt 10,11; 11,23; 26,38; Mc 6,10; 14,34; Lc 1,56; 8,27; 9,4; 10,7; 19,5; 24,29.29. João ainda usa esta expressão 27 vezes em suas cartas.
 

[7] Jo 15,4.4.4.5.6.7.7.9.10.10.16
 

[8]Cf. Mateos J. e Barreto J., O Evangelho de São João, Paulinas, 1989, p. 627
 

[9] Idem e ibidem p.636.
 

[10] Para aprofundar o assunto, veja testemunhar: Jo 1,7.8.15.32.34; 2,25; 3,11.26.28.32; 4,39.44; 5,31-33.36-37.39; 7,7; 8,13.14.18; 10,25; 12,17; 13,21; 15,26-27; 18,23.37; 19,35; 21,24; 1 Jo 1,2; 4,14; 5,6-7.9-10; 3Jo 3.6.12; Ap 1,2; 22,16.18.20.
 

[11] Cf. R. E. Brown, Giovanni, Citadella Editrice, Assisi, 1979, p.1495-1499.

Sobre o autor
Frei Moacir Casagrande

Moacir Casagrande, Sacerdote. Nasceu no ano de 1955 em Putinga-RS. Filho de Domingos Casagrande e Rosina Lourenço da Luz. Ingresso na Ordem dos Frades Menores Capuchinhos no dia 02 de fevereiro de 1978.

Formação

Cursos de Filosofia e Teologia. Mestrado em Teologia, especialização Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana e Pontifício Instituto Bíblico de Roma

Áreas de atuação

Professor de Sagrada Escritura no ITEO, no IFITEG e no ISB. Assessorias Bíblicas, retiros e assembleias e tem cinco livros publicados e muitos artigos em várias revistas.

Livros publicados

Deus ontem e hoje (Ano: 1990)
Novo Testamento em 30 lições - Um jeito fácil de entender (Ano: 1992)
O Segredo do Evangelho (Ano: 2011)

Contato: [email protected]