Tamanho do Texto:
A+
A-

Nossa vida de contemplação

Publicado por Frei Moacir Casagrande | 27/04/2015 - 00:01

Diante dos seres, de uma realidade, de pessoas ou representações e até mesmo do próprio Deus, podemos tomar diferente iniciativas tais como: apropriação, cooptação, exploração, associação, conflito, mas também encantamento, entrega e contemplação.

A dimensão mística do carisma franciscano também pode ser chamada de CONTEMPLAÇÃO. Foi por meio dela que Francisco chegou a discernimento de sua vocação e também por meio dela que consegui tão profunda comunhão com toda a criação, além de grande integração entre a oração e a ação.

A atitude contemplativa de cunho franciscano se caracteriza por abrir-se para acolher “dentro de si” a realidade observada, considerando-a digna e única. Por exemplo, você olha para a flor e se demora diante dela, não para desejá-la, nem para entender a sua realidade, mas para abrir espaço no coração e na mente para que a flor possa habitar em você. Mas veja bem, não é a maravilha de flor que se impõe a você, é você que se dispõe a ela. Em vês de agarrar a flor ou tirar uma foto dela, você se deixa impregnar por ela.  Para chegar a isso é necessário cultivar a humildade que chamamos de minoridade e a irmandade que chamamos de fraternidade. Ambas tidas como essência de toda a boa convivência.

Minoridade é eleger para si o último lugar e/ou o lugar do último. Atitude que vai à contramão da lógica do pensamento comum da humanidade, mas identifica o cerne do Evangelho: “Se alguém quiser ser o primeiro seja o último de todos e o servo de todos”, diz Jesus (Mc 9,35). Por sua vez, a pobreza, que em Francisco de Assis é despojamento, está submissa à minoridade. De modo que podemos afirmar com segurança, que não possível ser verdadeiramente pobre sem ser menor.

Fraternidade é reconhecer e acolher no outro e na outra a mesma dignidade, mesmo direito e a mesma realização que me corresponde. A fraternidade diz respeito especialmente às nossas relações não na linha do ter, mas na linha do ser. Francisco e clara de Assis escolheram um modo de vida em que se consideram e se fazem irmãos e irmãs de todas as pessoas, mas também de todas as criaturas, porque todas tem como origem o mesmo Pai=Deus. Ver a outra pessoa como irmã, acolher e tratar nesse nível exige deixar-se tomar por Cristo e cultivar com solicitude uma relação como a dele com todo o criado. É uma questão de fundamento: “Quem diz que ama a Deus a quem não vê e não ama seu irmão que vê, é mentiroso” (1 Jo 4,20). Francisco não escolheu ter irmãos, mas Deus lhe deu irmãos, ele os acolheu e os tratou como presentes de Deus: “E depois que o Senhor me deu irmãos, ninguém me mostrou o que deveria fazer, mas o Altíssimo me revelou que deveria viver segundo a forma do santo Evangelho” (Test. 14).

Para aprofundar este assunto demos a palavra à nossa mestra, Clara. Segundo a Legenda (LegCl 31) “no dia da Ceia do Senhor, pela tarde, Clara entristecida e aflita fechou-se no segredo de sua cela. Acompanhando em oração o Senhor que rezava, sua alma triste até a morte, embebeu-se da tristeza Dele, a memória foi se compenetrando da captura e de toda a derrisão: caiu na cama. Ficou tão absorta toda aquela noite e, no dia seguinte, tão fora de si, com o olhar ausente, cravada sempre em sua visão única, parecia crucificada com Cristo, totalmente insensível. Assim passou toda a noite, todo o dia seguinte até a noite”.

Dela testemunham as irmãs Cecília e Balbina do mosteiro de São Damião. Segundo irmã Cecília “Era vigilante na oração, sublime na contemplação, tanto que algumas vezes, quando saia da oração, parecia que o seu rosto estava mais claro, e desprendia uma doçura de sua boca” (PC VI,3 FF p. 1851). Por sua vez, irmã Balbina diz que “Clara era diligentíssima e muito solícita na oração, na contemplação e na exortação das irmãs, entregando-se completamente a isso” (PC VII,3 FF p. 1854).

Vejamos agora como Clara orienta Inês de Praga ao exercício de contemplação. Primeiro ela diz o que Inês não pode deixar acontecer. “NÃO se deixe envolver pela amargura e o desânimo, senhora amada em Cristo, gozo dos anjos e coroa das Irmãs”. Em seguida o que Inês precisa fazer. SIM eis o FOCO: “Ponha a mente no espelho da eternidade, coloque a alma no esplendor da glória. Ponha o coração na figura da substância divina e transforme-se inteiramente, pela contemplação, na imagem da divindade. Desse modo também você vai experimentar o que sentem os amigos, quando saboreiam a doçura escondida, que o próprio Deus reservou desde o inicio para os que o amam”. O que ela precisa abandonar? “Deixe de lado tudo o que neste mundo falaz e perturbador prende seus cegos amantes”. Quem ela precisa assumir? “Ame totalmente o que se entregou inteiro por seu amor... Falo do Filho do altíssimo” (3 In 11-17  FF p. 1708).

A contemplação é o remédio contra o desânimo e a falta de sentido da vida, mas para que tal remédio tenha efeito é necessário torná-lo prioridade. Esse remédio a gente não toma, ele é que toma a gente, mas para que isso aconteça é preciso cultivar a docilidade e se deixar tomar. Novamente Clara é a mestra. O que ela faz é o que ela pede que Inês faça: “entregar-se totalmente e deixar-se transformar pelo contemplado”. Que lugar e que tempo ocupa em minha vida o Cristo que eu contemplo?

Estamos no tempo da imagem e da estética. Tudo tem que ser bonito, produzido, impecável. Não importa tanto ser quanto aparecer. Para alcançar esse objetivo usa-se e abusa-se da maquiagem. Clara tem uma proposta fantástica, não para a maquiagem, mas para a nossa modelagem. Ela apresenta a estética duradoura, a prova de todas as intempéries e para todos os tempos. Neste salão de beleza podemos trabalhar a consistência de nossos traços e garanti-los eternamente. Nele cada um/a é protagonista de seu próprio processo de embelezamento. Aí não há maquiagem, mas modelagem. A maquiagem só cuida da aparência, a modelagem precisa cuidar do todo. Não dá para modelar sem tratar o conjunto, especialmente o que dá sustentação e permanência ao trabalho. Neste salão também só há um único espelho, ele é polidimensional. Esse espelho é Jesus, nele podemos ver a verdade em que nos encontramos e a verdade a que somos convidados a nos encontrar.

Acompanhemos e meditemos com zelo a orientação de Clara a Inês. “Feliz, decerto é você, que pode participar deste banquete sagrado (do Cordeiro) para unir-se, com todas as fibras do coração”. A participação do banquete do Cordeiro não é um congraçamento, não é um dever, é uma núpcia, uma união esponsal (cf. Ap 19,9). Segundo santa Clara, Inês, eu, você, e todos quantos buscam a comunhão com Cristo, buscam na verdade, a união com: a) Aquele cuja beleza todos os batalhões bem aventurados do céu admiram sem cessar; b) Aquele cuja afeição apaixona; c) Aquele cuja contemplação restaura; d) Aquele cuja bondade sacia; e) Aquele cuja suavidade preenche; f) Aquele cuja lembrança ilumina suavemente; g) Aquele cujo perfume dará vida aos mortos. Eis aí os sete atributos do Cristo contemplado por Clara e o convite dela para que cada um de nós possa fazer semelhante comunhão.

Olhe dentro desse espelho todos os dias, ó rainha, esposa de Jesus Cristo, e espelhe nele, sem cessar, o seu rosto, para enfeitar-se toda, interior e exteriormente, vestida e cingida de verdade, ornada também com as flores e roupas das virtudes todas, ó filha e esposa caríssima do sumo Rei”. O eu de cada um pode se ver, se contemplar e se modelar dentro do espelho Cristo. Aí são tecidas as virtudes franciscanas. “Pois nesse espelho resplandecem a bem-aventurada pobreza, a santa humildade e a inefável caridade, como, nele inteiro, você vai poder contemplar com a graça de Deus” (4 In 9-18 FF p. 1710).

Preste atenção no princípio do espelho: a pobreza daquele que, envolto em panos, foi posto no presépio. A admirável humildade, estupenda pobreza! O Rei dos anjos, o Senhor do céu e da terra repousa numa manjedoura (Lc 2,1-12). O espelho é Jesus Cristo, o princípio é o início da vida humana de Jesus. No meio estão o testemunho e a evangelização de Jesus. No meio do espelho, considere a humildade, ou pelo menos a bem-aventurada pobreza, as fadigas sem conta e as penas que suportou pela redenção do gênero humano. Isto se pode haurir daquilo que se diz da missão de Jesus segundo os evangelistas (Mt 8,16-17; 9,35-38; Jo 4,6). No fim a entrega total de sua vida por nós. E no fim desse mesmo espelho, contemple a caridade inefável com que quis padecer no lenho da cruz e nela morrer a morte mais vergonhosa (Mc 15,16-37)” (4 In 19-23 FF p. 1711).

A instrução de Clara é profundamente sábia. É necessário contemplar o Cristo por inteiro e não somente a parte, o acontecimento, a palavra ou a ação que nos agrada, com a qual mais nos identificamos. Não se trata de reduzir o Cristo ao nosso gosto, mas de nos deixar tomar e tratar pelo amor de Cristo. Como é que eu exercito minha contemplação: agarrado/a a tradições? Tomado/a por vícios e comodidades? Fixado/a sempre na mesma imagem e nos mesmos textos ou aberto/a para aquilo que o Espírito quiser instruir e revelar?

“Abrace o Cristo pobre como uma virgem pobre. Veja como por você ele se fez desprezível e siga-o, sendo desprezível por ele neste mundo. Com o desejo de imitá-lo, mui nobre rainha, olhe, considere, contemple o seu esposo, o mais belo entre os filhos dos homens, feito por sua salvação o mais vil de todos, desprezado, ferido e tão flagelado em todo o corpo, morrendo no meio das angústias próprias da cruz” (2 In 18-20 FF p. 1707). Contemplar e abraçar o Cristo pobre, eis o nosso desafio. Há algumas décadas esta consciência estava mais aguçada, mas agora o centro das atenções é o Cristo estético, lindo, encantador, milagreiro, poderoso, esfuziante. Você procurou colocar a instrução de Clara em prática ou acha que ela está defasada?

Por fim, vejamos as sete virtudes das irmãs Clarissas segundo frei Tomás de Celano (Vida I 19-20). Antes de tudo vigora entre elas a especial virtude da mútua e contínua CARIDADE que de tal forma une as vontades delas que morando juntas quarenta ou cinquenta no mesmo lugar, o mesmo querer e o mesmo não querer fizeram nelas de diversos um único espírito.

Em segundo lugar em cada uma brilha a gema da HUMILDADE que de tal modo conserva os dons concedidos e os bens recebidos dos céus que merecem as demais virtudes.

Em terceiro lugar, o lírio da VIRGINDADE e da CASTIDADE de tal maneira asperge todas com admirável odor que, esquecidas dos pensamentos terrenos, elas desejam meditar unicamente os celestes, e da fragrância dele nasce tão grande amor para com o Esposo eterno nos corações delas que a integridade deste sagrado afeto exclui delas todo o costume da vida anterior.

Em quarto lugar, todas foram marcadas pelo título da ALTÍSSIMA POBREZA a ponto de mal ou nunca consentirem em satisfazer a extrema necessidade do alimento e da veste.

Em quinto lugar, elas adquiriram especial graça da ABSTINÊNCIA E DO SILÊNCIO a ponte de absolutamente não precisarem esforçar-se para coibir o apetite e frear a língua; e algumas delas estão tão desacostumadas das conversas que, quando a necessidade exige que elas falem, mal se recordam de formar as palavras como convém.

Em sexto lugar, elas são adornadas tão admiravelmente pela virtude da PACIÊNCIA em tudo que nenhuma adversidade de tribulação ou injúria ou incômodo quebra ou muda o estado de espírito delas.

Finalmente, em sétimo lugar, de tal modo alcançaram o mais alto grau da CONTEMPLAÇÃO, que nelas aprendem tudo o que deve ser feito e o que deve ser evitado e, de modo feliz aprenderam deixar-se arrebatar com a mente em Deus (1 Cel 19,2-20,3). O que estas virtudes podem ajudar para a nossa vida de contemplação e fraternidade?         

Sobre o autor
Frei Moacir Casagrande

Moacir Casagrande, Sacerdote. Nasceu no ano de 1955 em Putinga-RS. Filho de Domingos Casagrande e Rosina Lourenço da Luz. Ingresso na Ordem dos Frades Menores Capuchinhos no dia 02 de fevereiro de 1978.

Formação

Cursos de Filosofia e Teologia. Mestrado em Teologia, especialização Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana e Pontifício Instituto Bíblico de Roma

Áreas de atuação

Professor de Sagrada Escritura no ITEO, no IFITEG e no ISB. Assessorias Bíblicas, retiros e assembleias e tem cinco livros publicados e muitos artigos em várias revistas.

Livros publicados

Deus ontem e hoje (Ano: 1990)
Novo Testamento em 30 lições - Um jeito fácil de entender (Ano: 1992)
O Segredo do Evangelho (Ano: 2011)

Contato: [email protected]