Sobre a reconciliação
Põe-te logo em concórdia com teu adversário,
enquanto estás ainda a caminho com ele (Mt 5, 25a)
Sempre quando alguém nos fere, intencionalmente ou apenas por descuido, num gesto de desprezo, grosseria, ironia, ou mesmo em ardilosa maldade, por palavras, atos e omissões, inevitavelmente, tal ofensa se derrama sobre nossa alma como um ácido que corrói, ou o que é pior: como um solavanco que, não raro, desperta a nossa própria maldade. É até possível que consigamos não revidar, mas inegavelmente: neste instante, quase sempre, apodera-se de nós um secreto desejo de vingança, a vontade de que o outro experimente a mesma dor e sinta a aflição do mesmo sofrimento. É quando o monstro de nosso própria maldade, que pensávamos já mais ou menos domesticado nos muitos anos de devota ascese, se revela como apenas adormecido e muito facilmente despertável.
É preciso deveras ter uma grande alma ou ser como o mar, largo e profundo, para não se obscurecer com rios tão turvos . Evitar que a maldade que, de fora, nos sobressalta, assalte-nos a nossa bondade, arrebente-nos a alma e arrebate-nos nos seus próprios turbilhões, não é fácil. Ordinariamente, o que ocorre é o contrário: alguém nos fere e, assim feridos, ferimos. Acontece que também o outro foi ferido e aí os sentimentos se açulam, as paixões se aguçam, as palavras se atiram, com um ímpeto que já não conhece nem limite nem medida, numa espiral diabólica de maldade sobre maldade. Até que, atordoados, se afastem os contraentes, quase sempre em mórbido silêncio e, em ambos os frontes, com um indisfarçável sentimento de perda.
Pois, é claro que podemos fazer um outro sofrer muito, por exemplo: com nossas vaniloqüências impensadas ou argutamente perpetradas, com nossas malícias ardilosas, com nossos interesses cavilosos e grosserias desabridas, nossas inverdades e mesquinharias. Mas, ao final, nunca será apenas o outro a vítima de nossa maldade. Nós mesmos é que perdemos. Quando mentimos, por exemplo, nós é que perdemos um pouco de nossa própria verdade. Ou quando somos impiedosos, nós é que perdemos um pouco de nossa própria grandeza de coração. Ou quando somos rudes e rígidos, nós é que perdemos um pouco de nossa própria cortesia e delicadeza. Ou quando infernizamos a vida de alguém, nós é que nos colocamos do lado de fora do reino da fraternidade.
Eis aí a razão, creio, dos apelos de Jesus a que amássemos os nossos inimigos: que jamais entrássemos, pelos labirintos infindáveis das contumélias, das ações e reações contumazes, nesta ciranda da maldade e nunca permitíssemos que o outro, em sua malevolência, determinasse a conduta de meu ser e agir. Expor a outra face, depois da primeira bofetada , isto, longe de ser uma convocação ao estoicismo, à idolência, apatia ou letargia, é um convite a uma firme integridade, a termos espinha dorsal, a sermos autônomos, isto é, a observarmos o nosso próprio nomoV, a ordo, a regula , o tonus de nós mesmos.
Mas amar o inimigo é, substancialmente, bem outra coisa que apenas resistir à sua maldade, não revidando suas hostilidades. Orai pelos que vos perseguem, é assim que continua o versículo em que Jesus nos convoca a amar os inimigos. Orar por aquele que nos fere, que nos magoa, que nos rouba a paz e a alegria. Esta, na verdade, é a única verdadeira trilha que nos poderia levar ao amor do inimigo.
O problema é que o nosso rezar, quase sempre, não consegue ir muito além de uma fraseologia pretensamente religiosa tão superficial quanto supérflua. Mas o que é o rezar, senão um lançar nos abismos de um grande Mistério os nossos sorrisos de alegria, em gratidão, ou as nossas lágrimas de tristeza e penúria, em petição? Rezar pelo inimigo é depositar no regaço de Deus a nossa tristeza e um apiedar-se da infelicidade daquele que nos fez sofrer.
Vejamos isto à mão de uma história. Trata-se de uma cena da obra de F. M. Dostojewski, Crime e Castigo. É Raskolnikov, um estudante pequeno-burguês, com a mente cheia de leituras mal-digeridas e sonhos de grandeza tão desmedidos quanto precária era a sua situação financeira. Ele deixa sua aldeia, sua mãe viúva e sua pequena irmã e vai para Petersburg, tentar a sorte.
Ali ele encontra albergue junto a Aliona, uma avarenta sórdida, que, exatamente por sua sovinice, ajuntara um certo dinheiro que ele, ciosamente, guardava num secreto de sua casa. E já nos primeiros dias na nova morada, Raskolnikov percebe isto e começam os diabólicos pensamentos: Ali está Aliona, esse ser inútil, já decrepto e do qual não há de vier mais nenhum proveito para o mundo! Se eu a matasse e me apoderasse de seus bens, continuaria meus estudos, ajudaria minha mãe e minha irmã e conseguiria meios para ajudar a coletividade. Tudo depende de um único gesto: matar aquela velha. Será isto um crime, suprimir esta coisa miserável? Não, isto não pode ser... esta coisa miserável é uma vida humana. Mas a vida humana não é um valor absoluto. Desde a mais remota antiguidade, os grandes chefes de estado e os grandes generais nunca hesitaram em matar milhares de pessoas, quando encontraram pela frente um motivo que os justificasse... e ninguém os considerou criminosos. Não foi assim com Napoleão? Jamais duvidou em verter sangue inocente para atingir seus fins. O importante é ser superior, é pertencer à raça dos napoleões, é sobrepor-se. De resto, aquilo ali nem gente é mais, é apenas um piolho...
Assim pensando, Raskolnikov sente-se arrebatado por uma voragem de coragem. Ele mata Aliona e elimina também Lizaveta, a criada de Aliona, para que não houvesse testemunhas de seu crime. Ele mata e rouba.
Tudo estava consumado, não fora o seu próprio espírito que agora o atormenta. Ele já não consegue mais justificar a legitimidade de seu ato, frente à própria consciência. Teoricamente estava tudo certo: um verme inútil à sua frente, uma velha em agonia quase e seu muito dinheiro e ele, jovem, uma vida toda ainda por viver. Mas a vida não é teoria e pura lógica e por mais nobre que seja a causa, terá o homem direito de matar?
Açoitado por tais pensamentos, Raskolnikov erra às tontas pelas ruas de Petersburg. Ele entra num prostíbulo e ali se encontra com Sonja, a menina que se vendia para matar a fome das crianças de sua madrasta. E lhe confessa o seu crime: Eu matei um piolho. Olhando-o em silêncio, ela ouve toda a história... um olhar que não era deste mundo, irá dizer mais tarde o seu próprio pai, o alcoólatra Marmeladov, era do céu, pois só lá em cima é que se pode sofrer assim pelos homens, chorar por eles, sem condená-los. Ambos ficam longamente em silêncio. Raskolnikov, perdido no turbilhão de seus pensamentos, Sonja, em oração, lendo uma página do Evangelho de João. Despedindo-se de Raskolnikov, ela lhe diz apenas isto: Tenho pena, muita pena de você, porque não foi um piolho que você matou, mas a sua própria vida.
Se conseguíssemos isto, rezar pelo inimigo, isto é, apiedarmo-nos dele, vê-lo já não mais como um demônio, mas como vítima - Deus sabe desde quando e por quais razões! - também ele, como alguém que sofre e que, porque sofre, faz sofrer, talvez, talvez: em vez de raiva, tivéssemos comiseração e, no lugar de vingança, misericórdia. Olhar mais fundo e, quem sabe, perceber que, atrás da agressão, encontra-se apenas um coração vazio e indigente, que outra coisa não quer senão apenas um pouco de carinho.
Talvez isto nos fizesse compreender que o outro não é um crápula, um idiota, um estúpido, um farsante, mas apenas um infeliz, um deslocado de seu próprio centro, um degredado do paraíso.
Sim, tinha razão a poetisa das Américas, Violeta Parra, ela mesma uma pessoa que nunca encontrou o amor e, por isso mesmo, retirou-se da vida, matando-se. Mas ela sabia e cantava: Qual um mago condecendente, nos afasta docemente de rancores e violências, só o amor com sua ciência nos torna tão inocentes... só o amor, com seus esmeros, detém os peregrinos, libertas os prisioneiros, ao velho o torna criança e ao mau, só o carinho, o faz puro e sincero.
Bastante significativo, em relação a isto, é uma observação linguística de nossa tradição religiosa. Rigorosamente, a língua materna de Jesus Cristo, tanto o hebraico quanto o aramaico, não possuía nenhuma palavra específica para dizer perdoar. Para isso, usavam-se os verbos nš' (carregar, portar) e kpr (cobrir, velar, proteger, acolher) .
E um outro aspecto do rezar pelo inimigo: voltar os olhos para Deus, pois enquanto ficarmos olhando apenas para o lado, medindo-nos, comparando-nos, sempre encontraremos alguém que é melhor do nós e, em nosso complexo, o invejaremos e nos sentiremos pequenos e sempre encontraremos alguém que é pior do que nós e, em nosso complexo, nós o desprezaremos, sobrepondo-nos a ele.
A vida, seja ela religiosa ou não, não é uma queda de braço, uma rede de intrigas, uma permanente disputa disto ou daquilo. Nós somos filhos da Prodigalidade e felizes, de verdade, nós só o seremos se formos pródigos e generosos e fraternos. É isto que torna a vida bela e amável. A nossa vida é efêmera, sim, ridiculamente breve. Nós não podemos perdê-la apenas com rusgas, rixas, controvérsas e contendas... um morrer a cada dia e um sepultar-nos a cada instante, perdendo-nos muito mais do que abrindo-nos à eternidade.