Coração de pedra versus coração de carne: João 8
"Arrancarei de vós o coração de pedra e vos abençoarei com um coração de carne" (Ez 36, 26)
Coração de pedra versus coração de carne
João 8
“Os mestres da lei e os fariseus trouxeram-lhe uma mulher surpreendida em adultério... Na Lei, Moisés nos ordena apedrejar tais mulheres. E o senhor, que diz?” Se Jesus confirmasse o que diz a lei de Moisés, nada de novo estaria trazendo a esta nossa velha humanidade. Se se insurgisse contra a lei simplesmente seria réu também ele. “Mas Jesus inclinou-se e começou a escrever no chão com o dedo”: “... todos aqueles que se apartam de mim serão escritos na poeira; porque abandonam o Senhor, a fonte das águas vivas” (Jr 17, 13).
No livro do Êxodo 31 se diz que a lei foi gravada em pedra. E há também profecias como a de Jeremias que sonha com a lei gravada nos corações. “Gravarei nele a minha lei, hei de escrevê-la em seus corações. Eu serei o seu Deus e eles serão o meu povo” (Jr 31,33).
Biblicamente falando, a justiça de Deus é uma ação divina para eliminar o mal. E o mal é eliminado quando o Senhor faz justiça, isto é, quando recoloca o ser humano no caminho da vida. O pai do filho pródigo faz justiça acolhendo o filho que abandonara a casa paterna. Jesus irá fazer justiça salvando a mulher pecadora. Fazer justiça é fazer a vontade de Deus reinar nas pessoas. Não tem nada a ver com matar as pessoas que cometeram o pecado.
O Juiz poderá dá anistia ou um indulto que reduza a pena. Não é assim a misericórdia. Jesus aqui não é juiz, mas se deixa levar pelas entranhas da misericórdia que ele experimenta. E levado por esta emoção irá fazer justiça a uma filha que não está vivendo no justo. Um juiz é chamado a se relacionar através da lei. Jesus, ao contrário, se relaciona como que em família: como entre pessoas que se amam.
“Visto que continuavam a interrogá-lo, ele se levantou e lhes disse: ‘Se algum de vocês estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar-lhe a pedra’. Inclinou-se novamente e continuou escrevendo no chão”.
Faz-se silêncio. Uma coisa é pensar e falar de acordo com um grupo: cada um é apoiado pelos outros. Outra coisa é cada um voltar-se para si mesmo, saindo do grupo.... Diante das palavras: “Se algum de vocês estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar-lhe a pedra", faz-se silêncio, cada um se olha, cada um fica diante da própria “resposta” que dará: jogar ou não jogar ...? Cada um será chamado a responder por si. Não adiante dizer a si mesmo: “os outros fazem assim, também eu o faço”. Você jogaria a pedra porque outros jogam? Jesus, com a pergunta, põe cada um diante do seu próprio coração. E cada um descobrirá que tem um coração de carne, que não basta o coração de pedra (a lei). De fato, desistiram de condenar a mulher. Jesus conseguiu escrever algo de bom em seus corações. Silêncio. Jesus não dirá absolutamente nada (8,6). “Silêncio” também de olhares. Jesus abaixa o rosto. Que delicadeza. Jesus permite que cada um fique consigo mesmo, sem se intimidar... No silêncio surge algo que não havia ali: surge a consciência, surge humanidade (a dor, o sofrimento, a história pessoal de cada um), surgem compaixão, ternura, cortesia, singeleza e pacificação Descobrem uma fonte de água viva dentro deles; fonte que salva vidas. Aceitemos que todos somos pecadores. Eu, você, aquela pessoa conhecida e também aquela desconhecida tem a mesma dilaceração interior. Na dor, na busca de perdão e de redenção, na necessidade somos todos iguais. No silêncio Jesus os convida a ver que por detrás de cada um há uma história, fatos, uma pessoa com os seus sentimentos, com as suas dificuldades, com os seus problemas, com a sua dignidade.
“Os que o ouviram foram saindo, um de cada vez, começando com os mais velhos”. Os mais velhos representam a sabedoria e são eles que entendem logo que as escolhas se devem fazer com o coração.
Interessante é que não mais se reúnem em torno da mulher. A sensação e os holofotes se dirigiam para aquela mulher. E agora eles vão para onde? Cada um vai para a própria vida, olhar mais a esposa, os filhos, o próprio trabalho, pedir perdão a Deus dos próprios pecados, ser mais verdadeiro, etc.
“Então Jesus pôs-se de pé (melhor tradução: só ergueu a face, continuando inclinado) e perguntou-lhe: ‘Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?’ ‘Ninguém, Senhor’, disse ela. Declarou Jesus: ‘Eu também não te condeno. Agora vai e não peques mais’".
Jesus acaba com o esquema do bode expiatório. O mal precisa ser eliminado. Mas como ele se instaura em toda pessoa, não se pode eliminar a todos, e aí se escolhe de eliminar alguém para pagar por todos e assim satisfazer ao desejo de justiça. Todo espírito humano, todo grupo humano tem sede de um bode expiatório: alguém que encarne o mal que habita também dentro de mim e que não sou capaz de reconhecê-lo em mim. Então, para tentar fazer as pazes com a minha consciência, elejo alguém ou um grupo que será o mal. Veja-se os casos de abusos e linchamentos dentro das prisões quando um preso tenha sido condenado por infringir a lei Maria da Penha, por exemplo.
ALGUÉM ACREDITA EM MIM.
Jesus não diz à mulher: "Muito bem, fizeste bem!". Ele diz: "Vai, e de agora em diante não peques mais" (8,11). A culpa paralisa, o perdão liberta. "Talvez fizeste algo que nem mesmo agora te faz feliz. Aconteceu, mas agora deixa pra lá. Não te condene. E saiba que tu podes recomeçar". Isso é maravilhoso: Jesus acredita que a mulher tenha, sim, recursos, forças para superar tudo aquilo. Isto é amor.
Jesus não sublinha o pecado, mesmo sabendo que o pecado se fez presente. Jesus enfatiza a capacidade da mulher para sair dele, os seus recursos para construir uma vida melhor e para ser diferente. Jesus disse: "Tu podes. Não é verdade que és assim e que serás sempre assim. Não acredites nisso! "Tu podes ser diferente, podes ser melhor, podes mudar. Eu sei que tu podes, eu acredito nisso".
Jesus não chama a atenção para o erro. Ela também sabia que era errado! Jesus enfatiza o lado positivo. A fé é simplesmente confiar no outro. Jesus amou a mulher, porque ele disse: "Sim, terás errado, mas eu acredito ti."