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Homilia da Solenidade da Assunção de Nossa Senhora / Frei João Santiago

Publicado por Frei João de Araújo Santiago | 18/08/2018 - 09:02

Solenidade da Assunção de Nossa Senhora

Ap 11, 19. 12, 1.3-6.10; Lc 1, 39-56

O pecado e a morte entraram na vida dos homens e mulheres: “... por um só homem o pecado entrou no mundo, e pelo pecado, a morte...” (Rm 5, 12). Houve uma promessa: adescendência da “mulher” esmagaria a cabeça da “serpente”, e, então, a morte e o pecado seriam vencidos: “Cristo ressuscitou dos mortos, primícias dos que morreram” ( 1Cor 15,20). Jesus Cristo ressuscitou como o primeiro, e os cristãos após Ele.

Porei inimizade entre ti (serpente) e a mulher, entre a tua descendência e a descendência da mulher. E Ela (a descendência da mulher) te atingirá a cabeça. E tu lhe atingirás o calcanhar” (Gn 3, 15).

Não se pode separar a “descendência”, Jesus Cristo, da mulher, a mãe da nova descendência, a geradora de Jesus, Maria Santíssima. Com a ressurreição, a promessa se cumpriu, Jesus vencendo a morte e o pecado, passou a manifestar um corpo glorioso. Com a ressurreição de Jesus, Maria, após sua morte, foi assunta, glorificada no seu corpo virginal. De fato, o dogma da Assunção declara: “... a imaculada Mãe de Deus, a sempre virgem Maria, terminado o curso da vida terrestre, foi assunta em corpo e alma à glória celestial". Em “corpo e alma”: com tal definição a fé da Igreja quer afirmar que a salvação é total, não é só da alma de Maria, mas da sua pessoa, em sua totalidade. Em “corpo e alma” seremos, também nós, ressuscitados: não perderei minha identidade, meu eu, minha corporeidade, não me tornarei uma mera energia ou uma gota d´água em um qualquer oceano, nada de nirvana ou reencarnação “tornando-me” não sei quem ou o quê. Corpo somático? Certamente não. Mas corpo glorioso (cf. 1Cor 15, 54).

- A Bíblia atesta que há, sim, “... uma igreja esplêndida, sem mancha, nem ruga, nem defeito algum, santa e irrepreensível” (Ef 5, 27), “Uma mulher revestida de sol” (Ap 12, 1).    Não é verdade que todos os humanos resistem à “graça”, pois existe um “... resto que diz sim à graça” (Rm 11, 6). Não se trata só de uma maneira de falar ou de algo genérico (uma “igreja”, um “resto”), mas também de um rosto, de algo que acontece em uma pessoa, uma criatura: em Maria de Nazaré. Por isso Nossa Senhora, que é apresentada como verdadeira discípula, como bendita porque acreditou, como mulher vestida de sol (de Deus), como igreja irrepreensível, como quem diz sempre “sim” à graça, é proclamada “Assunta” nos Céus. Ela, criatura de Deus, conseguiu: assim podemos nós também conseguir, pois, afinal, todos nós somos chamados à assunção em Deus.

Alguém pode dizer: “Jesus Cristo, o jovem Galileu, viveu conosco, ressuscitou, mas era Deus. Nós, não! Somos meras criaturas, não respondemos completamente à Vontade do Senhor”. Diante disso é que a festa da Assunção vem nos provocar: “Olha...veja Maria, criatura também ela, e, no entanto, chegou lá”. Não esqueçamos, portanto, do nosso amanhã, da nossa meta final. Não esqueçamos que somos chamados à mesma “coisa” que aconteceu com Maria e acontece com a Igreja: somos chamados à assunção, pois uma vida divina foi nos dada, e desde agora já podemos nos deliciar desta vida nova: “... com Ele nos ressuscitou e nos fez sentar nos céus em Jesus Cristo”(Ef 2, 6).

- Pela Encarnação, pela vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo, a vida do Eterno já se faz acontecer em todo discípulos do Senhor. De fato, “... vossa vida está escondida com Cristo em Deus” (Col 3, 3). E não só temos uma “vida escondida com Cristo”, mas também já somos assumidos e acolhidos pelo céu: “... com Ele nos ressuscitou e nos fez sentar nos céus em Jesus Cristo”(Ef 2, 6). De alguma maneira já participamos de sua ressurreição e ascensão junto ao trono de Deus. A festa da Assunção nos anima no sentido de revelar que isso já aconteceu plenamente em Maria, afinal, o Verbo, Deus mesmo, se fez carne na carne de Maria, e, assim, a carne de Maria ganhou o mesmo destino da carne do seu Filho. O Verbo de Deus (Isto é, Deus como ação e presença) gerou e assumiu a carne de Maria de uma maneira especial e única quando na carne de Maria habitou por nove meses. Uma união assim tão carnal e espiritual, tão humana e divina, não poderia ser passageira, mas inseparável: é para sempre tal união. A carne de Maria, a pessoa de Maria, habitada pelo Verbo, por Deus, foi assumida para sempre, está gloriosa no Céu: “... a imaculada Mãe de Deus, a sempre virgem Maria, terminado o curso da vida terrestre, foi assunta em corpo e alma à glória celestial” (Assim o dogma define).

Motivo de festa.

No Evangelho de Lucas, Maria profetiza: “Todas as gerações me chamarão de bem-aventurada” (Lc 1, 48), isto é, me chamarão de feliz, salva, redenta. Na festa da Assunção de Maria somos chamados a cumprir essa profecia evangélica, isto é, vamos fazer festa e celebrar as maravilhas que o Senhor fez em sua serva, pois ela, a Virgem Maria, foi salva, redenta, assunta em corpo e alma nos céus. E assim fazendo a profecia de Maria se cumpre: “Todas as gerações me chamarão de bem-aventurada” (Lc 1, 48). Não esqueçamos que “bem-aventurada” significa que em Maria a grande promessa se cumpriu, que ela chegou, alcançou a meta, venceu a corrupção, o pecado, a morte. Nesta festa celebramos o poder salvador do nosso Deus e reconhecemos que Maria chegou lá, alcançou a felicidade, o estado de “beata”, de salvação definitiva. “... com Ele nos ressuscitou e nos fez sentar nos céus em Jesus Cristo”(Ef 2, 6).

- Maria fala, João salta, louva, bendiz, presta culto (cf. Lucas 6, 23; 2Sm 6, 16). João dançou diante de Maria e Jesus. Davi dançou diante da Arca da aliança. A Arca significa proximidade de Deus. Maria grávida significa mais do que proximidade de Deus: Deus mesmo, não próximo, não perto, mas em nós, conosco, habitando em nós, não só próximo a nós, mas “Emmanuel”. Se a fé bíblica do Antigo Testamento jubila diante da Arca que trazia os escritos sagrados, quanto mais devemos dançar diante daquela que traz, não escritos sagrados, mas o próprio Deus entre nós. Só quando entendemos isso, podemos compreender também o culto mariano. O culto mariano é a ação de se deixar tomar pelo encanto da alegria de que existe, indestrutível, o verdadeiro Israel que não resiste ao Senhor: “Eis aqui a escrava do Senhor. Faça-se em mim segundo a tua palavra”. O culto mariano é o lançar-se bem aventurado no júbilo de engrandecer o Senhor (Magnificat) e com isso é louvor d´Aquele de quem a Filha de Sião é devedora, pois Ele fez nela “maravilhas”. O culto mariano é louvor d´Aquele que ela, Maria, traz dentro de si, como a verdadeira, incorruptível e indestrutível Arca da aliança que sempre diz “fiat”, “sim”, “faça-se em mim a Vontade do Senhor”.

Abriu-se o templo de Deus no céu e apareceu, no seu templo, a arca do seu testamento. Houve relâmpagos, vozes, trovões, terremotos e forte saraiva. Apareceu em seguida um grande sinal no céu: uma Mulher revestida do sol, a lua debaixo dos seus pés e na cabeça uma coroa de doze estrelas. .... Eu ouvi no céu uma voz forte que dizia: ‘Agora chegou a salvação, o poder e a realeza de nosso Deus, assim como a autoridade de seu Cristo, porque foi precipitado o acusador de nossos irmãos, que os acusava, dia e noite, diante do nosso Deus’” (Apoc, 11, 19; 12, 1.3-6.10).

Ver é acordar, é se dar conta, é olhar, é sair de si, é se deparar com outra coisa, com a realidade, com Deus falando nas coisas, acontecimentos e pessoas. Ver é sempre uma novidade, faz bem, pois nos traz sentido para o viver. Celebrar a Assunção de Maria é trazer luz a este mundo, proclamar a potência de Cristo que pode nos ressuscitar. A festa da Assunção é profecia: o que já aconteceu com Maria irá acontecer conosco. Fala do nosso destino glorioso, do destino da criação. A festa de hoje nos interpela a crer que Dio tem projetos grandiosos para cada um de nós.

Importa celebrar a desta da Assunção de Nossa Senhora, pois há também os que se acomodam em não esperar mais nada da vida, nem no pós-morte. Há os que imaginam que no pós-morte será só uma energia ou “sei-lá-o-quê”. Não! O ser humano, na festa da Assunção, é chamado a olhar para o destino glorioso de alguém que não perde o seu nome, a sua identidade, não reencarna, mas ressuscita, preserva o seu belo corpo, seu nome, sua vida. Ao contrário de Eva, Maria passou pela prova, se deixou conduzir pelo Senhor e aderiu (Disse “sim”) ao chamado: “Feliz aquela que acreditou, porque será cumprido o que lhe foi dito da parte do Senhor” (Lc 1, 45).

A festa da Assunção pede que olhemos para o depois da história e consideremos a beleza que seremos quando a glória nos revestir. Nossa Senhora assunta ao Céu, isto é, revestida da vida de Deus, aparece bela e o belo eleva o homem e o torna capaz de vencer os engodos dos “bens-fetiches”(“Bens-fetiches”, isto é, substitutos compensatórios. Tais “bens” podem frear a expansão da pessoa. Aqui temos os apegos ao cargo, à pessoas, à coisas e objetos, etc.). O belo penetra o homem - libertando-o de seu egoísmo -, e o leva a se render amorosamente, deliciosamente, como num êxtase, ao Belo Supremo, ao nosso Deus. E, assim, o homem sai de si mesmo, de sua mesquinhez e se entrega à grandeza e plenitude, como um filho que readquire seu Pai. Contemplando as maravilhas de Deus (e Maria assunta é uma delas), o homem torna-se bom e passa a viver melhor com os demais. Importa se atraído pela Beleza e passar a apreciar e saborear as coisas simples da vida: o louvar a Deus será consequência. Demos graças a Deus porque a sua Igreja, na festa de hoje, nos oferece tais delícias da fé.

Sem esta paisagem do nosso amanhã glorioso, todos nós passaremos a olhar só esta terra, e olhando só esta terra nos tornaremos pessoas apagadas, por demais intoxicados, entorpecidos e indiferentes em um horizonte por demais limitado de nossa contemporaneidade. Sem olharmos para o alto, para a “Assunta”, esta terra se torna arena de violência, de luta entre os humanos, acima de tudo.

A festa de hoje combate o desprezo de si, a baixa-estima. A festa da Assunção fala do corpo de Maria, do corpo humano, do meu corpo, do nosso corpo. A vida humana nesta terra não pode ser só passagem. Não queremos perder nosso corpo, nosso “eu”! No meu corpo eu encontro as pessoas, eu construo minha vida, me alimento, durmo, acordo, corro, adoeço, brinco, morro. O meu corpo é a minha vida, sou “eu”. Não posso perder meu corpo: com ele aprendi a sentir necessidade do outro. Qual o destino desse corpo que não é só passagem e que pede descanso, repouso, encontro, abraço? Vestir-se de sol: “Apareceu em seguida um grande sinal no céu: uma Mulher revestida do sol”. E, assim, vestido de sol, de Deus, o corpo da Virgem Maria brilha, se comunica. E o meu corpo brilhará, se expressará: será glorificado. E eu brilharei, me expressarei para sempre: serei glorificado.

Sobre o autor
Frei João de Araújo Santiago

Frade Capuchinho, da Província Nossa Senhora do Carmo. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Mestre em Teologia Espiritual. Tem longa experiência como professor, seja no Brasil, como na África, quando esteve como missionário. Por vários anos foi formador seja no Postulantado, como no Pós Noviciado de Filosofia. Atualmente mora em Açailândia-MA. Já escreveu vários livros e muitos artigos.