Homilia da Solenidade do Cristo Rei - ano C / Frei João Santiago
Jesus Cristo, Rei do Universo. (Lucas 23, 35-43)
“É doce o viver e o penar para trazer benefícios aos irmãos e para tantas almas que, vertiginosamente, desejam se justificar no mal, a despeito do Bem supremo” (São Padre Pio).
Todos nós queremos reinar, brilhar, obter reconhecimento, ser importantes. Até aqui tudo bem! Santa Teresinha, no auge da sua juventude, (24 anos) faleceu dizendo: “Todos os meus desejos foram realizados”. São Paulo dizia antes de sua partida expressou seu desejo de ser coroado: “Combati o bom combate, guardei a minha fé ... a coroa da justiça me aguarda” (2Tm 4, 7-8). Ser coroado: eis o sonho dos filhos de Deus, eis o teu sonho, nosso sonho. Não sejamos traidores de nós mesmos, busquemos as coisas do alto, um reino que dure para sempre. O humano coroado, realizado, no reino que dura para sempre é aquele capaz de amar e servir, é livre até de si mesmo, é vencedor da morte.
Todos nós queremos nos afirmar, nos sentir vivos, vencedores no sentido de realizados. Procuramos um reino que não passe e queremos inserir nossa vida num projeto que permaneça e que nossa passagem neste mundo não seja em vão. O Evangelho de hoje nos aponta um reino que não passa e é sábio agremiar-se a este reino, servir a este reino, gastar a vida por este reino: é o Reino de Cristo.
No desejo bom que temos de reinar, de viver e de ser feliz é que o Maligno se insinua: “Eu te darei todo esse poder e sua glória ... se te prostrares diante de mim, tudo será teu”. Insinua-se pela boca dos líderes religiosos e dos soldados: “Salvou a outros, que se salve a si próprio, se é o Cristo, o escolhido de Deus!” ; “Se és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo”. Ou seja: o Diabo distorce, tenta fazer acreditar que reinar para sempre, ser feliz, significa viver única e exclusivamente para si mesmo.
Como Lucas nos narra, o próprio Jesus foi tentado a reinar como todo e qualquer rei mundano e pecador (Jesus no deserto, por exemplo). Sendo ele, Jesus, homem inteligente, capaz e líder das massas seria muito fácil humilhar os adversários, obter sucesso mundano, alcançar a glória deste mundo pecador e nefasto. Bastaria, para tanto, para ser “grande”, “escutar” o Maligno “dizendo”: “Jesus, engana, seduz, usufrui, aproveite-se dos outros, pois se continuas honesto, pensando nos outros, não gozarás o máximo que o mundo possa oferecer. Seja egoísta, faça triunfar os teus caprichos, pense só em ti mesmo, procure o teu próprio bem, a tua própria felicidade e não se preocupe com o bem alheio. Jamais seja irmão de ninguém, mas sempre se coloque como superior dos demais. Jesus, jamais sirva a alguém, mas, ao contrário, procure sempre ser servido pelos outros. O Maligno, portanto, tentou desviar Nosso Senhor daquele Reino que dura para sempre e fundado no encontro de irmãos e na partilha do pão e do vinho.
O Maligno é tentador. De fato, faz promessas, cria sonhos, faz-nos pensar em grandezas, parece mesmo que queira o nosso bem. O Diabo pretende, portanto, ensinar-nos como nós podemos ser pessoas realizadas, felizes, duradoiras, reinantes, gloriosas.
O Evangelho deste domingo nos apresenta uma “realeza”, a grandeza de um rei, que desnorteia a todos que pensam que reinar signifique oprimir; a todos que apostam a própria vida num projeto de mera força, de vitória sem escrúpulos. De fato, nosso Rei Jesus, na Cruz, não foi e nem é entendido de maneira assim tão fácil. Como pode o Vitorioso encontrar-se pregado na Cruz? Fomos educados para pensar que todo vitorioso é aquele que “manga” do adversário.
São Lucas, apresentando Jesus pregado na cruz, nos apresenta o nosso Rei sendo entronizado, tomando posse do trono de um Reino que não passa: o nosso Rei jamais será, portando, destronizado.
- “A multidão conservava-se lá e observava. Os príncipes dos sacerdotes escarneciam de Jesus, dizendo: ‘Salvou a outros, que se salve a si próprio, se é o Cristo, o escolhido de Deus!’” (v. 35).
A multidão só olhava, parecia não entender a morte de um inocente e a mansidão que ele mantinha mesmo diante de seus carrascos. Os líderes religiosos zombam, desdenham, não aceitam e não querem um Deus que não salve a si mesmo, mas “fabricam”, pregam, anunciam e adoram uma divindade que salve a si mesma e esmague os adversários. Só desta maneira os líderes religiosos encontram uma justificativa para alimentar aquele desejo – que todos nós temos - de humilhar, vencer, derrotar e, quem sabe, até mesmo escarnecer de outras pessoas. Em tempos de “teologia da prosperidade” muitas “igrejas” precisam imaginar e pregar um “deus” que só ajude a mim e acabe com os outros: “Salvou a outros, que se salve a si próprio, se é o Cristo, o escolhido de Deus!”.
O Deus que salva os outros gera uma nova humanidade em nossos corações, termina nos chamando a colaborar para que outras pessoas encontrem o seu lugar neste mundo. O Deus que salva os outros gera em nossas almas a compaixão e a solidariedade. O Deus que salva os outros deve ser conhecido e amado: só desta forma teremos paz nesta terra, em nossas comunidades, nas famílias, entre casais, dentro de nós.
O Deus que salva os outros, que aceita tomar a Cruz em nosso lugar, nos livra da cruz, da aflição, tormentosa do remorso, da culpa e do castigo. Ele se compadece de nós, nos acalma: “Hoje estarás comigo no Paraíso”.
Jesus na Cruz exorciza aquele “deus” terrível que salva a si mesmo destruindo os outros, aquele “deus” invocado pelos líderes religiosos e soldados: “... salve a si próprio, se é o Cristo, o escolhido de Deus!”; “Se és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo”. Infelizmente, ainda hoje, nega-se a Cruz de Cristo, o Deus que prefere salvar os outros a salvar a si mesmo. E isso porque busca-se justificar o próprio egoísmo e maldade apelando-se a um certo “deus”, a um certo “jesus”.
Jesus, perfeita revelação do mistério que é Deus, tira de mim a falsa imagem de Deus que procura salvar a si mesmo destruindo os outros.
O Deus que salva os outros me salva da falsa imagem de Deus, da ideia errada de rei, da ilusória ideia de realização e sucessos equivocados.
- “Do mesmo modo zombavam dele os soldados. Aproximavam-se dele, ofereciam-lhe vinagre e diziam: ‘Se és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo’” (vv. 6-37).
Os soldados, escravos de reis terrenos, homens acostumados a matanças, possuíam aquele espírito que só sabe apreciar a força bruta, que só conhece a lei do mais musculoso, do mais feroz e do mais armado, e para quem reinar significa pensar só em si (“salva-te a ti mesmo”) esmagando adversários e inimigos. Os soldados tentaram a Jesus, provocaram a sua masculinidade, incitaram a Jesus para que reagisse também com a força enquanto oferecendo-lhe vinagre, ofereciam violência e ódio.
- “Por cima de sua cabeça pendia esta inscrição: ‘Este é o rei dos judeus’” (v. 38). Jesus é Rei. O homem realizado, imagem de Deus, o homem ideal, o ideal de homem e de rei, que possui a vida em si, é um que não salva a si mesmo, mas que se faz semente em vista de frutos, que se faz partilha e solidariedade, que se faz pão, que vence o mal com o bem, o ódio com o amor. É o rei que usa seu poder para salvar a quem esteja ao seu lado. É o homem livre, não escravo de ninguém, livre para amar, livre do apego à própria vida, livre para ofertar a própria vida e servir a todos. Só este Rei nos pode libertar de um mundo no qual homens oprimem outros homens. Só este Rei pode nos fazer livres do medo de morrer, livres do medo de fazer da vida um grande serviço.
E a morte?
- “Um dos malfeitores, ali crucificados, blasfemava contra ele: “Se és o Cristo, salva-te a ti mesmo e salva-nos a nós!”. Mas o outro o repreendeu: “Nem sequer temes a Deus, tu que sofres no mesmo suplício? Para nós isto é justo: recebemos o que mereceram os nossos crimes, mas este não fez mal algum.” E acrescentou: “Jesus, lembra-te de mim, quando tiveres entrado no teu Reino!”. Jesus respondeu-lhe: “Em verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso”. (vv. 39-43)
Imaginemos o primeiro malfeitor dizendo: “Tu és o Cristo! Então... salva a ti mesmo e salva-nos também da morte que se aproxima. Estamos aqui injustamente. Eu fui preso porque lutei contra os romanos opressores, mas se tu nos tira daqui podemos continuar nossa luta pela expulsão dos romanos. O primeiro malfeitor, portanto, se considera um justo homem e tenta a Jesus para que abandone o Caminho, fuja do mistério da Cruz, não vença o mal por completo, não se faça solidário com os condenados à morte de todos os tempos. O segundo malfeitor entende que Deus se faz presente a ele no momento de sua morte (Deus quis estar com ele no momento mais dramático de sua vida de homem) e entende que Deus tem um amor maior do que a morte. O amor é mais forte do que morte. Suas centelhas são centelhas de fogo, uma chama divina (Cf. Cant, 8, 6).
Deus se revela na Cruz e por isso Jesus a assume. Deus é amor, se une aos seres humanos, lhes é solidário também na maldição absoluta (“Maldito quem morre no madeiro” – Gal 3, 13) e, por isso, se faz malfeitor, crucificado, abandonado. E, assim, crucificado, Deus não nos abandona na hora da morte, mas nos conduz ao seu Reino enquanto faz comunhão conosco: “Hoje estarás comigo no Paraíso”. Não se trata de uma ideia, mas de uma Presença. Que o nosso limite, nossa morte, se torne ocasião, uma grande chance de encontrar companhia, comunhão, benevolência, complacência, vencer a solidão e condenação: “Jesus, lembra-te de mim, quando tiveres entrado no teu Reino!”.
- “Em verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso”. “Estarei contigo”: a morte é vencida não de qualquer jeito, mas através do “estar juntos” (Eu não vos chama de servos, mas de amigos, disse Jesus). Eis que a morte deixa de ser distancia dos entes queridos e se torna amizade, companhia. Se no livro do Gênesis o pecador é expulso do Paraíso, aqui o pecador, pelos méritos de Cristo, é admitido ao Paraíso.