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Homilia do III Domingo da Quaresma / Frei João Santiago

Publicado por Frei João de Araújo Santiago | 03/03/2018 - 07:42

III Domingo da Quaresma

Jo 2, 13-25

“Estava próxima a Páscoa dos judeus, e Jesus subiu a Jerusalém. Encontrou no templo os negociantes de bois, ovelhas e pombas, e mesas dos trocadores de moedas. Fez ele um chicote de cordas, expulsou todos do templo, como também as ovelhas e os bois, espalhou pelo chão o dinheiro dos trocadores e derrubou as mesas. Disse aos que vendiam as pombas: ‘Tirai isto daqui e não façais da casa de meu Pai uma casa de negociantes’. Lembraram-se então os seus discípulos do que está escrito: ‘O zelo da tua casa me consome’ (Sl 68,10). Perguntaram-lhe os judeus: ‘Que sinal nos apresentas tu, para procederes deste modo?’ Respondeu-lhes Jesus: ‘Destruí vós este templo, e eu o reerguerei em três dias’....”.

Festa da Páscoa do Senhor ou Festa da Páscoa dos judeus? Deveria ser “do Senhor”, mas São João narra que era a Festa da Páscoa “dos judeus” (a farra dos judeus). De fato, os chefes sacerdotais se davam bem e o povão era desfrutado.

A exploração. O cordeiro que todo homem (a partir dos 13 anos) deveria oferecer no templo era comprado perto do templo. Detalhe: Ananias, o sumo sacerdote era o proprietário do recinto onde ficavam os animais que eram vendidos.  O cordeiro vinha abatido, a pele vendida, e os líderes religiosos se devoravam entre eles, pois a pele custava muito. Boa parte da carne era “devorada” pelos sacerdotes e funcionários, e o resto era vendido aos açougues. Em certos dias se chegava a reunir 100.000 pessoas e a sacrificar cerca de 18.000 animais. Um médico ficava sempre de plantão, pois dores de barriga eram comuns entre os sacerdotes, devido às comilanças de carne.  De outro lado, o peregrino devia comprar para comer, pois a carne do seu animal oferecido era comida por outros, não por ele. Portanto, em nome de Deus havia toda uma exploração. Para cada tipo de culpa, pedido de ajuda ou de cura, era estabelecido uma oferta especial em alimento ou em animal. O resultado disso tudo é que o templo tinha se tornado o maior banco da região, pois até ouro, dinheiro e pedras preciosas eram assegurados lá. Outro resultado é que Deus tinha se tornado uma espécie de negociante: “Se me pagas, libero o produto”; “Te perdoo se me dás uma oferta”. Deus tinha se tornado um ressentido: o pobre peregrino queria se “desculpar” de seus pecados para merecer a proteção divina, e Deus só olhava para ele se fosse aplacado em sua ira, em seu castigo através de holocaustos de animais. O pobre fiel sentia-se infinitamente e para sempre em débito para com o Senhor. Certamente também sentia baixa estima e desconhecia o amor de Deus.

- Jesus como um judeu piedoso também vai para a festa e assisti tudo aquilo: “Encontrou no templo os negociantes de bois, ovelhas e pombas, e mesas dos trocadores de moedas”. Deu-se conta ele que o templo não era mais um lugar de oração, mas de interesse, de mercado e de exploração.

Começa a destruição do templo. “Fez ele um chicote de cordas, expulsou todos do templo” (que fique vazio o templo). Jesus aqui elimina, não só purifica o templo. Expulsa os vendedores, acaba com a idéia de que para em estar em paz com Deus temos que comprar seu amor. Para São João, Jesus é o santuário, o templo de Deus é o seu corpo. Por isso procurará adoradores em espírito e verdade.

Para Jesus, decisivo é viver a fé, nossa amizade com Deus, saboreando o fato que Ele, o Senhor, se oferece a mim, se faz meu alimento. Isso me dá paz: Ele me ama e morre por mim. E é decisivo que eu o ame. Não lhe ofereço nada que possa aplacá-lo, acalmá-lo, impedir de ser castigado. Se eu lhe ofereço algo é só expressão do meu amor, da minha gratidão. Como se sentirá uma criança que vê se pai lhe dar pensão por ordem judicial? Uma coisa é dar por amor outra é por obrigação ou para comprar afeição. E mais: Deus nos ama e nos serve por primeiro ainda quando somos pecadores. Jesus explicita tudo isso em outra parábola: "Em verdade vos digo que Ele mesmo vos fará sentar à mesa e vos servirá” (Lc 12, 37). Jesus destrói o templo, muda tudo. Na verdade, quase não conseguimos entender o alcance de tudo isso: no templo, Deus é servido; em Jesus Cristo, nós é que somos servidos. No templo, tu ofertas coisas e animais; em Jesus Cristo, tu te ofertas. No templo, relação entre servo e patrão; em Jesus Cristo, relação amorosa.

- O verdadeiro culto é adesão, entrega, confiança, escuta (obediência) ao Senhor e não sacrifícios de animais ou outras tentativas de aplacar a ira divina. O Senhor prefere a misericórdia: "Se compreendêsseis o sentido destas palavras: ‘Quero a misericórdia e não o sacrifício...’ não condenaríeis os inocentes" ( Mt 12,7). O culto verdadeiro é holocaustos de misericórdia: "Se estás, portanto, para fazer a tua oferta diante do altar e te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa lá a tua oferta diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com teu irmão" (Mt 5,23-24). Isto é: façamos nossas ofertas, nossas orações, nossas liturgias e que tais coisas sirvam para eliminar de nós todo ódio, resentimento, rancor, juízo, e sirvam para fazer crescer o amor e a reconciliação.

Fim do templo, pois o Senhor Deus se sacrifica pelo homem. Só nossa fé cristã afirma e proclama que o Senhor foi crucificado para que nós não o sejamos. Quem ou o quê me devora? O “deus” pregado pela liderança de Israel devorava o povo que se sacrificava em servir aquele “ser” tirano. Alguém diz que hoje em dia temos uma divindade que suga a todos e ao qual damos reverência e ofertamos a própria vida. Chama-se mercado: felizes (salvos) quem pode comprar, quem pode ter, e quem não pode que viva triste, pois viver é ostentar o melhor, o último do ano e o mais caro. Quantas famílias, casais, jovens e crianças sofrem por exigências do mundo do trabalho, dos concursos e do ritmo de vida. Parece até que somos condenados a esperar por algo melhor que fica sempre para depois. Parece até que temos uma culpa que nunca é paga, expiada, redenta. O preço a pagar é a falta de humanidade que cada vez mais se delata entre nós: falta de tempo e calma para olhar, tocar, escutar, ouvir, dar atenção, estar junto. Ora, se sou devorado também passo a devorar. Devoro o outro, vivo como uma sanguessuga que usa a fraqueza do outro para o próprio deleite, fazendo do outro o próprio pão. Que regozijo se desfruta quando se destrona um inimigo! Jesus destrói tal sistema de vida, tal templo moderno: “Tomai todos e comei”. É como se dissesse: “Parem de se digladiarem; parem de usarem reciprocamente para todos os tipos de prazeres egoístas; parem de se matarem; parem de se fazerem mal uns aos outros e..... se alimentem de mim. Parem de se verem como uma potência que só tem apetite e que só se satisfaz comparando-se e vencendo os outros, e se descubram, alimentando-se de mim, como um dom, como pessoas que tem a vida e vida em abundância: basta que escutem: “Tomai todos e comei: isto sou eu”. “Se vocês não comerem a carne do Filho do Homem não terão a vida em vós, pois a minha carne é verdadeira comida e meu sangue verdadeira bebida”. Este é o verdadeiro culto. Faz-se necessário, portanto, desinfectar a imagem depravada de Deus que temos, que corresponde a imagem depravada que temos do próprio ser humano.

Cuidado. Para quem adora o “deus” do templo um destino se cumpre: a perda do sentido da vida, do sentido das relações humanas, da capacidade de doação e de perdoar. Perderá também a capacidade de entendimento e de solidariedade.

- Porém! Passado dois mil anos parece que pouco aprendemos. Assim como naquele dia Jesus se lamentou ("Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os enviados de Deus, quantas vezes quis ajuntar os teus filhos, como a galinha abriga a sua ninhada debaixo das asas, mas não o quiseste!" – Lc 13, 24), hoje também ele se lamentaria pelo fato de não escolhermos o verdaeiro culto da misericórdia e preferirmos a religião perversa que torna Deus um justificador de meus apetites que esmagam o próximo. E, no final, só restará ao ser humano um lamento, um choro, uma solicitação, um arroubo de um desejo não concretizado, um lamento por não ter amado, uma dor intensa, uma saudade no ar, um sentimento desejoso de algo que poderia ter sido vivido. Restará a expressão de insatisfação nas relações, em tanto vazio existencial, em demonstração de incompletude. Restará o desafio do não vivido, que muitas vezes nos assombra feito fantasma arrastando correntes nos corredores dos nossos velhos castelos. Restará ao final a solicitação  que deixa impressa na alma o mistério da busca ontológica de afirmação da existência humana (Deus, o amor e o outro). Restará uma vontade de nos suprir pelo prazer de partilhar e de experimentar perder o chão (o estremecer das bases e o retornar do mergulho solitário). Mas, talvez, seja tarde, pois teremos sucumbido ao medo de ser, de se deixar ir, de se permitir viver de coração, de misericórdia. 

Uma canção nos ajuda:

“Só uma coisa me entristece/o beijo de amor que eu não roubei ...

“Nada do que posso me alucina/tanto quanto o que eu não fiz/nada do que quero me suprime/do que por não saber ainda não quis”

 “Só uma palavra me devora/aquela que meu coração não diz/só o que me cega, o que me faz infeliz/é o brilho do olhar que eu não sofri.”

Sobre o autor
Frei João de Araújo Santiago

Frade Capuchinho, da Província Nossa Senhora do Carmo. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Mestre em Teologia Espiritual. Tem longa experiência como professor, seja no Brasil, como na África, quando esteve como missionário. Por vários anos foi formador seja no Postulantado, como no Pós Noviciado de Filosofia. Atualmente mora em Açailândia-MA. Já escreveu vários livros e muitos artigos.