Homilia do III Domingo do Tempo Comum - ano C / Frei João Santiago
III Domingo do Tempo Comum - ano C
(Lc 1,1-4;4,14-21)
Agora é a minha vez de praticar a Palavra.
Os insetos noturnos atraídos pela luz artificial, por vezes morrem queimados devido ao calor da luz. Há neles um instinto forte de atração pela luz. Simplesmente, esquecidos de si, “vão para cima” da luz. O Evangelho de hoje nos estimula a querer conhecer Jesus e torná-lo conhecido: “... eu resolvi, depois de ter investigado cuidadosamente tudo desde as origens, escrever-te, ilustre Teófilo ... assim compreenderás com certeza os ensinamentos que recebeste ...” (1, 1-4).
Se você ama uma pessoa desejará conhecê-la sabendo a sua história, as suas origens, os seus amigos, as suas experiências, as pessoas que frequenta. Um cristão de verdade desejará sempre se interessar em conhecer Jesus de Nazaré. A fé deve se apoiar sobre a pessoa de Jesus e sobre os seus eventos e acontecimentos históricos. A fé também é uma atração que nos leva a querer conhecer o seu íntimo, sua fé, sua família, suas palavras, gestos, reações, atitudes, como viveu, como morreu, como ressuscitou, isto é, sua vida, sua paixão, morte e ressurreição. Conhecer e amar a Jesus leva a cada um de nós a uma saída: de fato, com sua ressurreição, a vida do Eterno se faz presente em nossa história e os homens podem, finalmente, sair do ciclo mortífero: nascer, crescer, envelhecer e morrer.
Conhecer a Jesus significa também sair da ignorância. Não é por acaso que falsos amantes, abusadores, falsos profetas e “pastores” fazem tanto sucesso. Fazem sucesso porque tantos não se esforçam em conhecer a Jesus, suas palavras, gestos e atitudes.
- “Jesus ... levantou-se para fazer a leitura. ... ‘O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para anunciar a boa nova aos pobres. Ele me enviou a proclamar a redenção aos cativos e a vista aos cegos, a restituir a liberdade aos oprimidos’ “... Começou então a dizer-lhes: ‘Cumpriu-se hoje mesmo esta passagem da Escritura que acabais de ouvir’” (Lucas 4, 14-21).
Dominado pelo bom domínio do Espírito Santo, Jesus assume de corpo e alma a sua missão, mostra a sua face, expõe a sua vida na comunidade dos homens. Nosso Senhor nos ensina e se torna um exemplo para todos nós, para não fugirmos de nossa missão de pai, de mãe, de avós, de sacerdotes, de religiosos (as). Chega um momento na vida que não é correto conduzir a vida pela metade, mas, sim, assumir plenamente nossa vocação. É “feio” um pai que se mete a ser só “pareceiro” do filho, uma avô que se “mete” a competir com a beleza jovial da neta, um sacerdote que não assume a paternidade espiritual dos fieis, um consagrado de vida dupla, um servidor público que não serve a comunidade, um profisional que exerce pela metade o seu encargo.
No Evangelho de hoje assistimos Jesus que entra em cena. Que eu também possa dizer: “Agora é a minha vez, chegou a minha vez de entrar em cena”. Na doutrina do “Corpo místico”, Cristo é a cabeça do “Corpo” e nós os membros. Para que o advento do Reino de Cristo aconteça em nossas famílias e comunidades, urge que cada um “entre em cena”, exerça sua missão, não fuja de seu compromisso, não se negue ao Espírito Santo que nos impulsiona a “dar uma mão” na construção do Reino de Deus em nossos espaços familiares e comunitários de trabalho.
Façamos um exorcismo: expulsemos de nós o narcisismo religioso que leva o fiel a praticar a religião em vista somente de seus próprios interesses e tranquilidade interior, e que abafa o santo protagonismo ao qual cada um de nós é chamado: “Em verdade, em verdade vos digo: aquele que crê em mim fará também as obras que eu faço, e fará ainda maiores do que estas” (Jo 14, 12). Detalhe: entre as obras feitas por Jesus, não esqueçamos Lázaro que foi tirado do sono da morte. Nosso Senhor nos desafia a realizar obras maiores do que despertar os mortos na carne.
"Libertar os que se encontram nas prisões ou proclamar redenção aos cativos" (v. 18). Tenhamos cuidado, pois podemos ser prisioneiros da descrença ou de uma idéia distorcida de Deus, do fatalismo, das idéias obssessivas, das expectativas alheias, de vícios, pecados e crimes. Neste início de ano é bom pensar se por acaso começamos uma vida nova ou ainda estamos prisioneiros, isto é, não superamos velhas coisas vividas nos anos anteriores. Jesus disse ao paralítico: “Toma a tua cama e anda”.
Custa-nos sair de situações e laços. Por vezes nos julgamos até de covardes por não se sair de situações que só fazem e trazem o mal. Não esqueçamos, porem, que temos o Messias, o Redentor. O Messias Jesus, com sua graça, nos põe em marcha, em progresso, em caminho, em direção para a liberdade dos filhos de Deus.
“Vista aos cegos” (v. 18). Por vezes, não vejo e não considero o parecer alheio. Sou educado a catalogar as pessoas e não considerar as pessoas em seu mistério. Quando o Senhor recupera minha visão, eu me dou conta que não sou só um cidadão, só um trabalhador ou um mero consumidor, mas sou também, e acima de tudo, um filho do Eterno, tenho uma alma infinita e um desejo de infinito.
Ser cego é gritar por um sentido maior, é um apelo para que a maravilha da vida se mostre. No frenesi da vida, infelizmente, podemos nos encontrar impedidos de visão, de iluminação, de contemplaçao como experiência da realidade e do Real, de Deus, presente em todas as coisas e acontecimentos, sejam alegres, sejam tristes. O Senhor dando-me luz aos olhos me torna capaz de descobrir o sentido também do sofrimento, da cruz, da morte. A Beleza, a Glória existem: que o Senhor purifique meus olhos para vê-las palpitantes, palpitando, na vida.
Faltando a luz em nossos olhos, terminamos por interpretar as coisas, os outros, o mundo, a vida e a nós próprios de forma delirante. E de forma delirante eu posso pensar que os outros só me atrapalham e que não merecem viver, que não há amor possível entre homem e mulher, que posso enganar e roubar caso haja um “bom motivo” para tais ações, que fulano merece algumas calúnias, etc. Faltando a luz em nossos olhos uma agradável convivência na terra se torna impossível e a vida comunitária se torna impossível.
"Liberdade aos oprimidos” (v. 18). “A verdade vos libertará”, disse Jesus. Que tiremos o véu e deixemos às claras. Um grande dom de Deus é um dia na vida encontrarmos alguém a quem nos sentimos assim tão à vontade de narrar-lhe toda nossa vida. Cuidado: não contar a nossa verdade pode significar viver oprimido de si mesmo, das próprias paixões e concuspicência, da própria história de vida, das taras hereditárias.
“...para proclamar o ano de graça do Senhor” (v. 19). Imaginemos neste momento o Senhor proclamando para nós um “ano de graça”. Há dívidas impagáveis (quem não lembra do bom ladrão no alto da cruz) e o Senhor nos diz: “Estamos quites, recomecemos de novo”. O Senhor já decidiu. Sempre irá proclamar para nós um “ano de graça”. Cabe à nós acatar tal graça.
- “Entregaram-lhe o rolo do profeta Isaías. Desenrolou-o e encontrou o texto que diz ....”(v. 17). De um lado, o rolo, o livro enrolado, e, de outro lado, o desenrolar do rolo, a abertura de um livro. Uma das maiores alegrias que podemos vivenciar acontece quando nos damos conta do sentido de algo que antes nos parecia absurdo. Uma vida sem sentido e fatos tristes sem significação deixam o pobre ser humano desgostoso do viver. Jesus “abre o livro”, descortina o escondido, ilumina as trevas, dá sentido ao nosso pelejar.
Sabemos que Nosso Senhor não só leu e proclamou quatro enunciados (1“... anunciar a boa nova aos pobres. ... 2 e 3 proclamar a redenção aos cativos e a vista aos cegos ... 4 restituir a liberdade aos oprimidos”), mas, acima de tudo, viveu para isso. Acreditamos que é praticando tais ações que o “mistério” da vida se mostra, que o sentido maior para viver e morrer se faz valer sobre toda e qualquer contrariedade, seja no corpo, seja no espírito. Desenrolar o rolo, abrir o livro, ler e entender o mistério da vida, no final, é mesmo praticar a Palavra.
O “hoje”, o “aqui e agora”, faz toda a diferença em nossa vida. Qual a “palavra” hoje (“aqui e agora”) eu coloco em minha vida e faço minha, minha “palavra” para o hoje que vivo agora? Toda “palavra” aceita no hoje de minha vida é como uma semente bem plantada: germina e se torna uma planta no jardim da minha vida. Toda “palavra” verdadeira ou da verdade gera libertação, liberdade. Toda “palavra” mentirosa ou da mentira gera escravidão e escravos.
Quantas “palavras” mentirosas governam o nosso mundo. Quantas “palavras” verdadeiras tentam salvar este mesmo mundo. Tenhamos cuidado, portanto, com as “palavras” que nos governam no “hoje” de nossas vidas.
A Palavra de Deus quando se torna prática acorda, desperta, libera, dentro do ouvinte e praticante da Palavra, uma força humana e divina até então desconhecida: finalmente o nosso desejo profundo se permite desejar, atuar, agir. Um dia São Francisco exultou dizendo: “É isso que eu quero, é isso que eu desejo do fundo do meu coração”.
- “Enrolou o livro, entregou-o ao servente e sentou ... Jesus disse aos presentes: ‘Hoje, em vossa presença, cumpriu-se esta Escritura’” (vv. 20-21. “Cumpriu-se esta Escritura”, isto é, hoje eu realizo, faço acontecer a Palavra. Cumprir a Palavra é praticá-la, e praticar a Palavra é a uma maneira de não sucumbir na vida, mas manter a fé, a esperança e a caridade até o fim (cf. Mt 7, 25). Pratiquemos a Palavra: há algo que você deve fazer, deve dizer, deve evitar? Há um caminho novo que deve percorrer? As nossas escolhas plasmam o nosso destino. Quem não age bem, não escolhe o melhor, faz com que o próprio destino se torne um caos.