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Homilia do XIX Domingo do Tempo Comum - ano A / Frei João Santiago

Publicado por Frei João de Araújo Santiago | 13/08/2017 - 12:07

XIX Dominfo do Tempo Comum - ano A

Mateus 14, 22-33


Quem quer passar além do Bojador  (Bojador tem o significado do último
limite do homem e do seu mundo. Não pode ter medo da própria dor.)
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
“A Palavra e o pão, alimentos para travessias”
Uma comunidade que tem tudo para caminhar sobre as águas, tem o pão do
amor (“Comei, isto sou eu dado por vós”). De fato, carregavam doze
cestos de pães, “multiplicados” pelo próprio Senhor Jesus que se faz
alimento para nós (cf. Mt 14, 20). Infelizmente “esqueceram o primeiro
amor”: “... quando vos reunis, já não é para comer a ceia do Senhor
... porquanto, mal vos pondes à mesa, cada um se apressa a tomar sua
própria refeição; e enquanto uns têm fome, outros se fartam”.
Esqueceram que o Senhor doou o próprio corpo e pediu que se fizesse
memória dessa doação e entrega. “Esta é a razão por que entre vós há
muitos adoentados e fracos, e muitos mortos”. Esta é a razão do medo
quando o “mar revolto” se apresenta (cf. 1 Cor 11, 17-41). Este é o
motivo pelo qual quando a tempestade chegou, e quando o Senhor se fez
presente, não o reconheceram: “É um fantasma!!!”. Pedro tem fé,
consegue aquilo que é desejo de todo homem que passa por esta terra,
isto é, CAMINHAR SOBRE AS ÁGUAS, SUPERAR O ABISMO DA MORTE. “Vem”,
disse-lhe Jesus. Tal chamado é o definitivo e último. De fato, sobre a
sua Palavra (“Vem”) somos chamados a caminhar como Ele e com Ele sobre
o abismo da morte. Mas se fechando em seus próprios medos, traumas e
raivas, Pedro, perde a fé, afunda. Grita: “Senhor, salva-me!”. A fé
então se torna não mais uma força nossa, mas um apelo Àquele que é
confiável, fiel.
- Deus é amor (se fez pão, temos esse pão em abundância: doze cestos)
e quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele. No amor
fraterno, portanto, Ele se faz reinante e presente. Para uma travessia
em mar revolto, para superar o abismo da morte, se faz necessário uma
força maior; Aquele que caminha sobre as águas, que abre o mar
vermelho; Aquele que se faz presente e reinante como “amor fraterno”,
como pão partilhado, como sangue, suor e lágrimas partilhados.
O TEXTO
- “Logo depois, Jesus obrigou seus discípulos a entrar na barca e a
passar antes d´Ele para a outra margem ... Feito isso, subiu à
montanha para orar na solidão. E, chegando a noite, estava lá sozinho.
Entretanto, já a boa distância da margem, a barca era agitada pelas
ondas, pois o vento era contrário. ... Jesus veio a eles, caminhando
sobre o mar.  ...  ficaram com medo: É um fantasma! disseram eles,
soltando gritos de terror.  .... Tranqüilizai-vos, sou eu. Não tenhais
medo!  Pedro disse: ‘Senhor, se és tu, manda-me ir sobre as águas até
junto de ti!’ Ele disse-lhe: ‘Vem!’ Pedro saiu da barca e caminhava
sobre as águas ao encontro de Jesus.  Mas, redobrando a violência do
vento, teve medo e, começando a afundar, gritou: ‘Senhor, salva-me!’
No mesmo instante, Jesus estendeu-lhe a mão, segurou-o e lhe disse:
‘Homem de pouca fé, por que duvidaste?’ .... E, tendo atravessado,
chegaram a Genesaré”.
Meus irmãos e irmãos, lembremos da multiplicação dos pães e de como
sobraram doze cestos cheios de pães. “Jesus obrigou seus discípulos a
entrar na barca .....”.  Jesus cria uma situação, “obriga”, seus
discípulos a saírem do cômodo e a levarem a Palavra de prodígio (que
tinha “multiplicado” os pães) e os doze cestos de pães para outros
diferentes de si. Vamos deixar tantos sem a abundância da Palavra, da
ação, da misericórdia de Deus que traz união, alegria e sacia todo
homem? Tantas de nossas comunidades não fazem mais do que uma pastoral
de manutenção, não ousam partir, ir aos desconhecidos, não se tornam
uma “Igreja em saída”. Prefere-se a tranquilidade dos próprios espaços
e dos próprios conhecidos. Como estamos usando nossos bens, veículos,
tempo, amizades? À serviço da expansão do Reino ou ao próprio serviço
como se aqui tivéssemos morada permanente?
- Ondas. Mar. Águas. Noite. Os discípulos no “mar” (v.24) e Jesus no
“monte” (v. 25)”. ""Salvai-me, ó Deus, porque as águas me vão
submergir. Estou imerso num abismo de lodo, no qual não há onde firmar
o pé. Vim a dar em águas profundas, encobrem-me as ondas. Já cansado
de tanto gritar, enrouqueceu-me a garganta. Finaram-se-me os olhos,
enquanto espero meu Deus (Sl 68)".   Ondas, mar, noite e águas
representam o monstro do caos, as trevas, o princípio do mal, a
desordem, o medo, o precipício da morte. No “mar” não existem
referências, seguranças. No “mar” a pessoa está à marcê do acaso, sem
apoio e sem “querer próprio”, pois o “mar” me conduz para um possível
abismo mortal: que situação!  A noite representa a desorientação da
vida quando não mais se sabe por onde andar, pois tudo parece
contrário e ninguém por confiar. “A casa caiu”. Cadê a esperança?  A
tempestade provoca as mais diversas reações: "Oh meu Deus, não
consigo, é demais, é o fim. Que fiz de mal? Onde estás, Senhor? A vida
me traiu e o próprio Deus me esqueceu!!!”. Quantas tribulações uma
vida pode conhecer!!! Neste momento podemos nos perguntar: será que a
fé que dizíamos possuir não passava de um bem-estar que se sentia? Em
outras palavras: quando tudo vai bem dizemos: “Deus está aqui”. E
quando algo de desconfortável acontece, passamos a não mais acreditar.
Neste acaso, a fé se apresenta como um mero “estar confortavelmente”.
- No alto mar da vida nos sentimos a sós, impotentes. Companhia? Sim,
temos: solidão, medos, angústias, monstros e fantasmas interiores. Na
verdade, só em pleno mar agitado é que aparecerá quem realmente somos,
pois reconhecimentos, homenagens, títulos, estima alheia e finanças
não se fazem presente, não ajudam naquela situação. E agora? As
bengalas sumiram: será que ainda andaremos ou ficaremos prostrados
para sempre?
- “Feito isso, Jesus subiu à montanha para orar na solidão. E,
chegando a noite, estava lá sozinho”. Sozinho e rezando. Algumas
coisas na vida, não tem jeito, eu terei que viver sozinho. Algumas
decisões, não tem jeito, só eu terei que tomá-las. Em alguns momentos,
não tem jeito, as pessoas que amo não poderão estar comigo. Nem sempre
poderei “escapar” de mim bebendo, divertindo-me, medicando-me,
distraindo-me, comendo.
- O plano de Jesus de alcançar outra meta, de fazer uma travessia, fez
com que os discípulos encontrassem a tormenta, o mar agitado. O que
pensar disso? Todos nós sabemos que existem coisas necessárias e úteis
e que são, ao mesmo tempo, difíceis, duras. Basta pensar nas cirurgias
tão necessárias aos doentes. É difícil aceitar, mas por vezes
acordamos, nos despertamos, saímos do atoleiro, mudamos de rota ou
direção somente quando abalados pelas circunstâncias da vida, que para
o homem de fé não são acontecimentos sem sentido, mas prenhes de uma
nova presença de Deus. Uma vez chamaram ao hospital uma mãe. O seu
filho tinha se acidentado. Depois de tantos pensamentos diante da
situação, ela deu-se conta que a vida é um dom divino mais importante
do que o carro do ano, do que estar acima do peso, do que as opiniões
alheias, do que guardar mágoas... Aprendamos, portanto, a dar o justo
valor às coisas. Os discípulos aprenderam, naquele dia de tormentas, o
que é mesmo a fé e o quanto cumprir a Palavra e comer o pão do amor do
Senhor permite ao ser humano singrar o mar da vida, vencer a morte.
- Um drama! Obedeceram às ordem do Mestre e entraram na tempestade. A
Palavra nos leva a afrontar o que se precisa ser afrontado. Se não
tivessem obedecido não teriam entrado na tempestade. E aí? Qual melhor
opção? Não é por acaso que pululam os gurus, pastores de última hora,
igrejas das mais variadas idéias. Infelizmente há pessoas que querem
que outras resolvam suas vidas e que fantasiam outra vida – vivem até
uma vida paralela e/ou noturna -  e não encaram esta que tem o mar,
ondas, noite, ventos contrários. O Senhor conhece nossa grandeza e
nossa fragilidade. Por nossa grandeza, nos convida a entrar no mar
agitado, a afrontar a vida. Por nossa fragilidade, nos diz: “Coragem,
sou Eu, não temas”.
- Obedecendo ao convite “Vem”, Pedro caminha sobre a tempestade, sobre
o impossível. Não é magia, não é curandeirismo, não é pensamento
positivo, afinal, a tempestade não desapareceu no mesmo instante, a
dificuldade continuou ainda por um tempo. A fé, a fidelidade do Senhor
não faz o mar desaprecer, mas nos faz estar por cima do “mar”, e ele,
o mar, não nos engole. E só no final quando o Senhor estiver
completamente em nossa barca teremos a perfeita alegria, o vento e o
mar se acalmarão, não mais se farão ameaçadores.

Sobre o autor
Frei João de Araújo Santiago

Frade Capuchinho, da Província Nossa Senhora do Carmo. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Mestre em Teologia Espiritual. Tem longa experiência como professor, seja no Brasil, como na África, quando esteve como missionário. Por vários anos foi formador seja no Postulantado, como no Pós Noviciado de Filosofia. Atualmente mora em Açailândia-MA. Já escreveu vários livros e muitos artigos.