Homilia do XVI Domingo do Tempo Comum - ano B / Frei João Santiago
XVI Domingo do Tempo Comum - ano B
(Marcos 6, 30-34)
"Os apóstolos voltaram para junto de Jesus e contaram-lhe tudo o que haviam feito e ensinado. 31.Ele disse-lhes: Vinde à parte, para algum lugar deserto, e descansai um pouco. Porque eram muitos os que iam e vinham e nem tinham tempo para comer. 32.Partiram na barca para um lugar solitário, à parte. 33.Mas viram-nos partir. Por isso, muitos deles perceberam para onde iam, e de todas as cidades acorreram a pé para o lugar aonde se dirigiam, e chegaram primeiro que eles. 34.Ao desembarcar, Jesus viu uma grande multidão e compadeceu-se dela, porque era como ovelhas que não têm pastor. E começou a ensinar-lhes muitas coisas."
- “...contaram-lhe tudo o que haviam feito e ensinado”. De fato, haviam pregado a conversão, expulsado demônios e haviam sanado vários enfermos (cf. Mc 6, 12-13). Contar histórias, fatos e acontecidos de nossas vidas, sempre contamos. Cada um de nós tem seus anos vividos. O que contamos dos nossos anos, o que temos feito e ensinado? No final de nossas vidas, diz o doutor e santo Juan de la Cruz, seremos julgamos pelo amor (cf. Mt 25, 32ss). Também nossas paróquias e comunidades, assim como toda a Igreja, são chamadas a darem conta dos anos passados em meio aos homens e mulheres, crianças e jovens, adultos e idosos. Importa que a Palavra e os sacramentos tenham rompido distâncias e aproximado o Senhor junto ao povo sedento de liberdade e de cura. Liberdade dos demônios e espíritos impuros que são potências maléficas. Tais poderes e forças do mal podemos bem verificar quando em nosso meio e famílias reinam palavras agressivas, egoísmo, imoralidades, violência, roubos, enganos, mentiras, injustiças, fome, enfermidades e miséria. A presença dos discípulos de Jesus que se revestem da força da Palavra e dos sacramentos afronta e vence os poderes maléficos. Sinais de tal vitória nós vemos quando nasce o perdão, a generosidade, a alegria, o bem-estar, a solidariedade, a verdade, a benquerença, a acolhida, a ajuda e o temor de Deus.
Só nos resta uma séria avaliação a nível pessoal, familiar ou comunitária. Qual avaliação? A nossa catequese, educação, homilia e pregação promovem os sinais de vitória acima elencados? Afinal, a Palavra é Palavra de Deus(“... a Palavra de Deus é viva e eficaz, mais cortante que qualquer espada de dois gumes; capaz de penetrar até ao ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e é sensível para perceber os pensamentos e intenções do coração. E não há criatura alguma incógnita aos olhos de Deus. Absolutamente tudo está descoberto e às claras diante daquele a quem deveremos prestar contas” - Hb 4, 12-13).
- “Ele disse-lhes: Vinde à parte, para algum lugar deserto, e descansai um pouco. ... Partiram na barca para um lugar solitário, à parte” (vv.31-32).
À mercê das paixões desmedidas, levado pela força do destino, carregado pelas ondas fortes das circunstâncias, sem poder de reagir ao ativismo e ao corre-corre, vamos sobrevivemos ( Pois viver é outra coisa!). Aqui corremos perigo de esquecer e até de se perder. Perder e esquecer as coisas e pessoas mais importantes da vida. Jesus leva seus discípulos ao deserto, lugar de intimidade, momento de oração, chance de avaliação. E não só! Acima de tudo oportunidade de repouso, descanso, paz interior, sossego. Não é fácil ir ao deserto, não é fácil o repouso, o sossego. Jesus deseja que os discípulos encontrem o segredo, aquilo que anima o interior de cada um deles, seus reais desejos, sonhos e aspirações. Temos um tesouro e temos um coração. Não percamos nem um e nem o outro. A pressa, a euforia, a bebedeira, o ativismo e a dispersão lutam para que o humano perca o tesouro e o coração.
O deserto é silencioso, lugar de “grandes conversas”, ensinamentos e encontros. No deserto cada um encontra o Mestre que nos ajuda a fazer a avaliação do que andamos pensando, rezando, trabalhando, fazendo. Lá no deserto há um confronto benfazejo com o Mestre. Deserto também é lugar de comer, de adoração, lugar de novos ares e de uma liberdade tão sonhada quanto desconhecida (“Assim diz o Senhor, o Deus de Israel: ‘Deixe o meu povo ir para celebrar-me uma festa no deserto" (Ex 5, 1).
- “Porque eram muitos os que iam e vinham ... de todas as cidades acorreram a pé para o lugar aonde se dirigiam” (31).
- “Muitos iam e viam”: que situação! A multidão é descrita como se estivesse debandada, sem referências, sem norte, desnorteada, sem rumo e sentido, sem “pastor”, entregues ao “deus-dará”, ao desamparo, à própria morte. Importa anunciar, se fazer presente, pois a Palavra não é anunciada em vão. Não todos, mas muitos acorreram ao encontro de Jesus e seus discípulos. Quando de verdade a comunidade cristã, assim como toda a Igreja, se faz presente com a Palavra, com os sacramentos e com a caridade fraterna, se torna significativa, exala o bom odor do Cristo, se torna esperança e porto seguro para muitos que anseiam por liberdade e libertação, por família e acolhida, por perdão e amor.
- “Ao desembarcar, Jesus viu uma grande multidão e compadeceu-se dela, porque era como ovelhas que não têm pastor. E começou a ensinar-lhes muitas coisas" (34).
O desembarque, a descida. Nosso Senhor não despreza aquela multidão formada por tantos rostos, por rebeldes e mansos, por jovens e adultos, por homens e mulheres, por enfermos e sãos, por desesperados e esperançosos, por letrados e analfabetas, por pobres e ricos, casados e “juntos”, por puros e luxuriosos, por caridosos e avarentos, por justos e outros não tanto honestos, e por aí se vão tantas faces do humano que “buscam e buscam” a alegria do viver e o sentido maior da vida. Infelizmente, por vezes, nós nos entrincheiramos em nossas opiniões, critérios pastorais e em nossas “teologias” e jamais desembarcamos, saímos das idéias para ir ao encontro das pessoas reais de carne e osso com seus dilemas, dificuldades e histórias de vida.
Avaliemos nossas secretarias paroquiais como lugares de uma primeira aproximação a uma comunidade cristã. Quem passa por nós, em nossa catequese, em nossos cursos, em nosso confessionário, em busca dos sacramentos, de uma “boa conversa”, de uma “luz” ou desabafo é bem recebido?
E não esqueçamos: Jesus desce, desembarca, e importa que eu esteja acorrendo ao seu encontro, pois, assim, haverá “o encontro”.
- “... compadeceu-se” (Vísceras maternas que se movem). Quando irá chegar o dia no qual a dor ou a fragilidade do outro (Que podem ser a ignorância, o desespero, a falta de sentido, as desilusões e decepções, o remorso e a culpa, a enfermidade e a pobreza) será o “leitmotiv”, a preocupação dominante, de nossa pastoral e da nossa pregação? Que a tua dor seja minha dor, que tua alegria seja minha também. Pela compaixão, o outro existe, é “achado”, visto, encontrado e reconhecido. Quase sempre nos sentimos tranquilos “somente” organizando as missas, alguns eventos e festejos. Convivemos com tantas pessoas, mas não damos espaços, não damos “chance”, para a partilha da vida, para escutar o que se passa no íntimo das pessoas. Compaixão é uma “ida”, é querer que a Luz vença as trevas que habitam em tantos corações.
De corpo e alma, amando até não poder mais: aqui temos expressões da compaixão. Caminhava com uma senhora. Em nossa direção vinha um senhor mentalmente enfermo. Ela disse-me: “Frei, vamos para o outro lado da rua”. Depois ela me explicou: “É de família. Minha mãe também era assim. Eu não posso “ver” um enfermo que me vejo forçada a ir ao seu encontro”. Assim era a compaixão em Jesus. A força mesma de Deus que o compelia a ir ao encontro da humanidade sofredora e sedenta de Luz, de Esperança, de Vida eterna. A diferença é que a senhora recalcava a “ida” ao enfermo, e Jesus, não, não recalcava, mas vivia isso plenamente, de corpo e alma, amando até não poder mais.
Compaixão: “Tomai todos e comei”. Compaixão: Ó Jerusalém, Jerusalém, que assassinas os profetas e apedrejas os que te são enviados! Quantas vezes Eu quis reunir os teus filhos, como a galinha acolhe os seus pintinhos debaixo das suas asas, mas vós não o aceitastes! (Mt 23, 37).
- “... E começou a ensinar-lhes muitas coisas” (v. 34). Interessante: a primeira forma de expressar compaixão na passagem que estamos meditando é o ensinamento.
A vida é um dom e é também uma tarefa. Recebemos a vida e somos imagem de Deus que é bondade e toda beleza. Temos a marca divina da bondade e da beleza, e se muitas vezes nos desviamos de tal marca, isso se deve a tantos maus e distorcidos ensinamentos que aprendemos.
Jesus acredita que podemos realizar a tarefa de “trazer para nós” e para o nosso dia-a-dia tudo o que é bom, verdadeiro e bonito, afastando de nós a malícia, a mentira, o jogo de interesses e tudo o mais que enfeia a face dos filhos de Deus. Que os belos ensinamentos dados pelo Bom e Belo Pastor sejam por nós praticados. Ele acredita que somos capazes, e por isso mesmo, nos ensinou muitas coisas.
O grave é nossa omissão, nossa falta de dedicação em aprender do Mestre e de passar adiante as “muitas coisas” ensinadas. Há uma espantosa passagem na Bíblia que relaciona a falta de conhecimento com a vida degenerada de toda a população. Trata-se de Oséias 4, 1-19. “Não há sinceridade nem bondade ... Juram falso, assassinam, roubam, cometem adultério, usam de violência e acumulam homicídio sobre homicídio. ... eu censuro a ti, ó sacerdote. ... Far-te-ei perecer, porque meu povo se perde por falta de conhecimento ...”.