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Homilia do XVIII Domingo do Tempo Comum - ano C / Frei João Santiago

Publicado por Frei João de Araújo Santiago | 03/08/2019 - 23:52

XVIII Domingo do Tempo Comum - ano C (Lucas 12, 13-21)

Vivamos como filhos e filhas do Pai, consideremos o que temos – bens materiais, capacidades humanas e espirituais – como dons, façamos de tais dons uma benção para nós e para nossos herdeiros partilhando nosso tempo, energia e bens. Vamos privilegiar nossas relações mais do que nossos acúmulos. Vivamos como irmãos e irmãs, pois só assim a vida nesta terra ganha qualidade de vida. Do contrário, fazemos desta terra um lugar de disputas, ocasião de medo que nos tome o que é nosso, uma vida impossível.

Neste Domingo, o Evangelho nos apresenta um fato emblemático muito comum em meio a nós: a luta entre os irmãos pela herança dos pais. “Mestre, dize a meu irmão que reparta comigo a herança” (v. 13): um irmão se sente lesado pelo outro irmão que não quer repartir a herança. Os bens em si mesmos são inofensivos, mas, os homens, quase sempre, fazem deles motivo de discórdia, separação. Quando possuímos o espírito do Senhor em nós, os bens se tornam motivo de ação de graças ao Pai, fonte de todo bem, de toda vida e de minha vida. Com este mesmo espírito, os bens se tornarão bênçãos, servirão para unir-nos como irmãos e para a construção do bem comum. Neste sentido, é louvável quando alguém que termina por adquirir recursos emprega tais recursos para a criação de riquezas e empregos em seu ambiente social. Para um bom cristão, os bens que possam vir a possuir não serão considerados absolutamente seus, nem motivo de disputas e opressão, mas como uma responsabilidade social, isto é, como ocasião de criação de trabalho e solidariedade.

- “Jesus respondeu-lhe: ‘Homem, quem me constituiu juiz ou árbitro entre vós?’” (v. 14). Jesus não toma partido, responde nos precavendo da cupidez e do “ter mais” do que se necessita. São Paulo também afirmava que a avareza, cupidez por dinheiro, é raiz de todos os males, é uma idolatria (cf. 1Tim 6,10; Ef 5, 5). Idolatria enquanto o “dinheiro” ou o “ter mais” se torna a “coisa” que mais nos interessa nessa vida, e ao qual prestamos culto de adoração e que nos faz excluir o Senhor Deus, a própria família e os semelhantes de nossos afetos. Se alguém quiser descobrir qual o “Deus” ao qual presta culto, é só verificar qual o sentido da sua vida, isto é, basta verificar para quê vive e o quê faz da vida. Caso descubra que o objetivo de sua vida é acumular, é “ter mais”, então o seu “Deus” se chama “Mamona”, “Acumular”, “Ter mais”. Ao “Deus” que adoramos nós servimos. Ora, de repente, alguém pode descobri que, realmente, adora, beija, ora e se ajoelha ao seu “Deus” “Ter mais”. A divindade “Ter mais” não perdoa, exige escravidão, mata e destrói toda e qualquer vida. Vejamos...

Ainda sobre a divisão de herança, Abraão nos dá uma lição de como proceder. Para Abraão Deus prometeu a terra. Os servos de Abraão e os servos de Ló começaram a disputar espaço para pastorear seus rebanhos. Não se deixando levar pela cobiça, a fim de não romper a fraternidade, considerando seu “irmão” Ló mais importante do que bens e renunciando a parte que lhe cabe, Abraão disse: “Rogo-te que não haja discórdia entre mim e ti, nem entre nossos pastores, pois somos irmãos. Eis aí toda a terra diante de ti ... Se fores para a esquerda, eu irei para a direita; se fores para a direi­ta, eu irei para a esquerda. Ló, levantando os olhos, viu que toda a planície do Jordão era regada de água ... como o jardim do Senhor ... Ló escolheu toda a planície do Jordão e foi para o oriente. ... Abrão fixou-se na terra de Canaã, e Ló nas cidades da planície, onde levantou suas tendas até Sodoma” (Gn 13, 8-12). Como vimos, Ló escolheu a melhor parte e Abraão o deixou escolher por primeiro. Sabemos o resto da história: Sodoma foi destruída, Ló salvou somente suas filhas, perdeu esposa e todas as suas posses.

Aquele homem tinha solicitado ao Mestre Jesus de agir como aquele que exigiria a divisão da herança. Jesus não aceita servir como um que dividiria bens de pessoas intrigadas, não satisfaz aquele pedido. Nosso Senhor, com suas palavras, atacará a “raiz do mal” que é a cupidez. Somente destruindo a cupidez que galopa na alma dos homens é que podemos destruir os muros que nos dividem como pessoas e promover o bem comum.

- “E disse então ao povo: ‘Guardai-vos escrupulosamente de toda a avareza, porque a vida de um homem, ainda que ele esteja na abundância, não depende de suas riquezas’ (v. 15). Temos aqui uma solene advertência (“Atenção!”, “Tenha cuidado, mas muito cuidado mesmo”, “Mantenha a guarda e diligência”). Cobiça - avidez, ganância, avareza, “ter mais” - não garante nada. Então... o quê garante? São João nos revelou: “Quem ama passou da morte para a vida”. Que a nossa vida, nossa alma, não “sobreviva” de qualquer tipo de coisa (bens, posses, glamour, aplausos, vaidades), mas viva e palpite de vida do Amor que é Deus, das nossas relações familiares, comunitárias, solidárias e da nossa condição de filhos e filhas amados por Deus Pai. Deus é bom e a bondade por natureza sai de si mesma: vivemos dessa bondade de Deus que nos criou, que não reservou a vida só para si, mas alegrou-se em nos criar, em nos dá o seu “hálito”, sua vida, seu respiro. Não nos reduzamos na condição de mesquinhos e tacanhos, não façamos nossa vida, nosso amanhã, depender de coisas.

Cupidez? É bem verdade que queremos sempre mais, mas, na verdade, deveríamos querer ser mais, porque no final importa mais o que somos do que o temos. Sejamos, portanto, cada vez mais compreensivos, tolerantes, criativos, solidários e teremos mais qualidade de vida. Evitemos sentir fortes emoções no possuir e tenhamos fortes emoções em encontrar as pessoas, em alicerçar vínculos com nossos semelhantes, com nossas esposas, maridos, filhos, pais e todos aqueles que esperam uma chance para viverem e trabalharem ganhando o próprio pão com o suo do rosto.

Sacrificar a única vida que temos só para acumular coisas é uma grande idiotice. Não sabemos quantas vezes teremos que ouvir tal verdade. A “raça” humana tem dificuldades em aprender o Caminho que o Mestre Jesus nos ensinou. Quando nos deixamos mover pela avareza, tornamos os bens deste mundo uma maldição, pois se tornam motivo de disputas, rixas, intrigas, e nós mesmos nos tornamos como aqueles animais imolados às divindades enquanto nos sacrificamos e consumimos nossos dias somente em “ter mais”.

Jesus narra uma parábola, nos ajuda a entender que os bens “só fazem de conta” que dão segurança, pois na realidade não garantem nada.

- “Havia um homem rico cujos campos produziam muito. E ele refletia consigo: ‘Que farei? Porque não tenho onde recolher a minha colheita’Disse então ele: ‘Farei o seguinte: derrubarei os meus celeiros e construirei maiores; neles recolherei toda a minha colheita e os meus bens. E direi à minha alma: ó minha alma, tens muitos bens em depósito para muitíssimos anos; descansa, come, bebe e regala-te’” (vv. 16-19).  Que eu farei? Eu não tenho onde recolher... Eu farei o seguinte: eu derrubarei...., eu construirei...., eu recolherei..., minha colheita, meus bens..., eu direi à minha alma....”. Na parábola, Jesus acentua o monólogo do homem, a sua falta de colóquio com quem quer que seja, sua segurança depositada nos bens e nos sucessos econômicos, sua “paz” enquanto sua vida tinha muitos bens (“... ó minha alma, minha vida, tens muitos bens em depósito para muitíssimos anos; descansa, come, bebe e regala-te”). Não há mais ninguém na vida deste homem: só ele e as coisas. Família? Amigos? Comunidade? Deus? Não! Ele só conversa com ele e com coisas, com seus bens. Solidão!

É um homem doente, doente de avareza, de cupidez, da ânsia de ter sempre e cada vez mais como que de algo medrosamente estivesse fugindo ou como se desesperadamente procurasse algo ou uma forte emoção. É um homem enfeitiçado. Isso mesmo! Todo objeto, todo valor, qualquer propriedade pode se tornar um fetiche (feitiço). E torna-se fetiche quando você atribui poder sobrenatural, sobre-humano, fantástico, extraordinário, maravilhoso: uma potência que livra da morte. O fetiche é quase o saborear antecipadamente de um outro mundo. A emoção que desperta o fetiche é de compulsão, que significa ser arrastado, dominado e escravizado por aquilo que se tornou “fetiche” (posses, bens, beleza, inteligência, etc.). Para se libertar dos “bens-fetiche” não bastam exortações normativas, pois fazem parte daqueles demônios que somente com oração e jejum se mandam embora. Não esqueçamos a frase: “É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha....”

- “Deus, porém, lhe disse: ‘Insensato! Nesta noite ainda exigirão de ti a tua alma, a tua vida (Aquela vida que foi gastada e consumida imolada às coisas). E as coisas, que ajuntaste, de quem serão?’ Assim acontece ao homem que entesoura para si mesmo e não é rico para Deus” (vv. 20-21).

Ser rico para Deus. Quando uma pessoa só vê a si e seus bens, nunca verá o que Deus e os outros podem mostrar-lhe, jamais será enriquecido pelo amor e olhar do outro, jamais se dará conta que os bens deste mundo podem facilitar o nosso encontro e amizade deixando de ser motivo de disputas. Será uma pessoa muito “mesquinha”. Ver-se-á sempre pela metade, viverá pela metade. De fato, não vive, mas imagina viver em um futuro que nunca viverá: “E depois direi – verbo no futuro - à minha alma: ó minha alma, tens muitos bens em depósito para muitíssimos anos; descansa, come, bebe e regala-te”). Vivamos em comunhão, em família, em Igreja!

Triste fim: o homem da parábola jamais usufruirá dos bens desta terra. Não existe banquete solitário: a única forma de usufruir dos bens deste mundo que Deus nos deu é “degustá-los” em comum, em partilha.

Triste fim: deixará uma herança que só servirá para litígios. Fez mal a si e deixará o veneno da cupidez para seus herdeiros. Não é por acaso que o nosso mundo caminha marcadamente cheios de golpes, roubos, corrupção, disputas, intrigas, discórdias....

A melhor herança a deixarmos aos nossos filhos e filhas é a saudade da casa do Pai, é fazê-los sentir-se “filhos”, “filhas” de Deus, irmãos da humanidade, amantes do trabalho.

Que a Santa Eucaristia nos dê tudo aquilo que o homem da parábola buscava: descanso enquanto já vivemos salvos no amor do Senhor por nós; alimento porque não só sobrevivemos, mas vivemos de verdadebebida e alegria porque não estamos a sós, vivemos amorosamente na companhia do Senhor e de tantos irmãos e irmãs.

Sobre o autor
Frei João de Araújo Santiago

Frade Capuchinho, da Província Nossa Senhora do Carmo. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Mestre em Teologia Espiritual. Tem longa experiência como professor, seja no Brasil, como na África, quando esteve como missionário. Por vários anos foi formador seja no Postulantado, como no Pós Noviciado de Filosofia. Atualmente mora em Açailândia-MA. Já escreveu vários livros e muitos artigos.