Homilia do XVIII Domingo do Tempo Comum - ano C / Frei João Santiago
XVIII Domingo do Tempo Comum - ano C (Lucas 12, 13-21)
Vivamos como filhos e filhas do Pai, consideremos o que temos – bens materiais, capacidades humanas e espirituais – como dons, façamos de tais dons uma benção para nós e para nossos herdeiros partilhando nosso tempo, energia e bens. Vamos privilegiar nossas relações mais do que nossos acúmulos. Vivamos como irmãos e irmãs, pois só assim a vida nesta terra ganha qualidade de vida. Do contrário, fazemos desta terra um lugar de disputas, ocasião de medo que nos tome o que é nosso, uma vida impossível.
Neste Domingo, o Evangelho nos apresenta um fato emblemático muito comum em meio a nós: a luta entre os irmãos pela herança dos pais. “Mestre, dize a meu irmão que reparta comigo a herança” (v. 13): um irmão se sente lesado pelo outro irmão que não quer repartir a herança. Os bens em si mesmos são inofensivos, mas, os homens, quase sempre, fazem deles motivo de discórdia, separação. Quando possuímos o espírito do Senhor em nós, os bens se tornam motivo de ação de graças ao Pai, fonte de todo bem, de toda vida e de minha vida. Com este mesmo espírito, os bens se tornarão bênçãos, servirão para unir-nos como irmãos e para a construção do bem comum. Neste sentido, é louvável quando alguém que termina por adquirir recursos emprega tais recursos para a criação de riquezas e empregos em seu ambiente social. Para um bom cristão, os bens que possam vir a possuir não serão considerados absolutamente seus, nem motivo de disputas e opressão, mas como uma responsabilidade social, isto é, como ocasião de criação de trabalho e solidariedade.
- “Jesus respondeu-lhe: ‘Homem, quem me constituiu juiz ou árbitro entre vós?’” (v. 14). Jesus não toma partido, responde nos precavendo da cupidez e do “ter mais” do que se necessita. São Paulo também afirmava que a avareza, cupidez por dinheiro, é raiz de todos os males, é uma idolatria (cf. 1Tim 6,10; Ef 5, 5). Idolatria enquanto o “dinheiro” ou o “ter mais” se torna a “coisa” que mais nos interessa nessa vida, e ao qual prestamos culto de adoração e que nos faz excluir o Senhor Deus, a própria família e os semelhantes de nossos afetos. Se alguém quiser descobrir qual o “Deus” ao qual presta culto, é só verificar qual o sentido da sua vida, isto é, basta verificar para quê vive e o quê faz da vida. Caso descubra que o objetivo de sua vida é acumular, é “ter mais”, então o seu “Deus” se chama “Mamona”, “Acumular”, “Ter mais”. Ao “Deus” que adoramos nós servimos. Ora, de repente, alguém pode descobri que, realmente, adora, beija, ora e se ajoelha ao seu “Deus” “Ter mais”. A divindade “Ter mais” não perdoa, exige escravidão, mata e destrói toda e qualquer vida. Vejamos...
Ainda sobre a divisão de herança, Abraão nos dá uma lição de como proceder. Para Abraão Deus prometeu a terra. Os servos de Abraão e os servos de Ló começaram a disputar espaço para pastorear seus rebanhos. Não se deixando levar pela cobiça, a fim de não romper a fraternidade, considerando seu “irmão” Ló mais importante do que bens e renunciando a parte que lhe cabe, Abraão disse: “Rogo-te que não haja discórdia entre mim e ti, nem entre nossos pastores, pois somos irmãos. Eis aí toda a terra diante de ti ... Se fores para a esquerda, eu irei para a direita; se fores para a direita, eu irei para a esquerda. Ló, levantando os olhos, viu que toda a planície do Jordão era regada de água ... como o jardim do Senhor ... Ló escolheu toda a planície do Jordão e foi para o oriente. ... Abrão fixou-se na terra de Canaã, e Ló nas cidades da planície, onde levantou suas tendas até Sodoma” (Gn 13, 8-12). Como vimos, Ló escolheu a melhor parte e Abraão o deixou escolher por primeiro. Sabemos o resto da história: Sodoma foi destruída, Ló salvou somente suas filhas, perdeu esposa e todas as suas posses.
Aquele homem tinha solicitado ao Mestre Jesus de agir como aquele que exigiria a divisão da herança. Jesus não aceita servir como um que dividiria bens de pessoas intrigadas, não satisfaz aquele pedido. Nosso Senhor, com suas palavras, atacará a “raiz do mal” que é a cupidez. Somente destruindo a cupidez que galopa na alma dos homens é que podemos destruir os muros que nos dividem como pessoas e promover o bem comum.
- “E disse então ao povo: ‘Guardai-vos escrupulosamente de toda a avareza, porque a vida de um homem, ainda que ele esteja na abundância, não depende de suas riquezas’” (v. 15). Temos aqui uma solene advertência (“Atenção!”, “Tenha cuidado, mas muito cuidado mesmo”, “Mantenha a guarda e diligência”). Cobiça - avidez, ganância, avareza, “ter mais” - não garante nada. Então... o quê garante? São João nos revelou: “Quem ama passou da morte para a vida”. Que a nossa vida, nossa alma, não “sobreviva” de qualquer tipo de coisa (bens, posses, glamour, aplausos, vaidades), mas viva e palpite de vida do Amor que é Deus, das nossas relações familiares, comunitárias, solidárias e da nossa condição de filhos e filhas amados por Deus Pai. Deus é bom e a bondade por natureza sai de si mesma: vivemos dessa bondade de Deus que nos criou, que não reservou a vida só para si, mas alegrou-se em nos criar, em nos dá o seu “hálito”, sua vida, seu respiro. Não nos reduzamos na condição de mesquinhos e tacanhos, não façamos nossa vida, nosso amanhã, depender de coisas.
Cupidez? É bem verdade que queremos sempre mais, mas, na verdade, deveríamos querer ser mais, porque no final importa mais o que somos do que o temos. Sejamos, portanto, cada vez mais compreensivos, tolerantes, criativos, solidários e teremos mais qualidade de vida. Evitemos sentir fortes emoções no possuir e tenhamos fortes emoções em encontrar as pessoas, em alicerçar vínculos com nossos semelhantes, com nossas esposas, maridos, filhos, pais e todos aqueles que esperam uma chance para viverem e trabalharem ganhando o próprio pão com o suo do rosto.
Sacrificar a única vida que temos só para acumular coisas é uma grande idiotice. Não sabemos quantas vezes teremos que ouvir tal verdade. A “raça” humana tem dificuldades em aprender o Caminho que o Mestre Jesus nos ensinou. Quando nos deixamos mover pela avareza, tornamos os bens deste mundo uma maldição, pois se tornam motivo de disputas, rixas, intrigas, e nós mesmos nos tornamos como aqueles animais imolados às divindades enquanto nos sacrificamos e consumimos nossos dias somente em “ter mais”.
Jesus narra uma parábola, nos ajuda a entender que os bens “só fazem de conta” que dão segurança, pois na realidade não garantem nada.
- “Havia um homem rico cujos campos produziam muito. E ele refletia consigo: ‘Que farei? Porque não tenho onde recolher a minha colheita’. Disse então ele: ‘Farei o seguinte: derrubarei os meus celeiros e construirei maiores; neles recolherei toda a minha colheita e os meus bens. E direi à minha alma: ó minha alma, tens muitos bens em depósito para muitíssimos anos; descansa, come, bebe e regala-te’” (vv. 16-19). Que eu farei? Eu não tenho onde recolher... Eu farei o seguinte: eu derrubarei...., eu construirei...., eu recolherei..., minha colheita, meus bens..., eu direi à minha alma....”. Na parábola, Jesus acentua o monólogo do homem, a sua falta de colóquio com quem quer que seja, sua segurança depositada nos bens e nos sucessos econômicos, sua “paz” enquanto sua vida tinha muitos bens (“... ó minha alma, minha vida, tens muitos bens em depósito para muitíssimos anos; descansa, come, bebe e regala-te”). Não há mais ninguém na vida deste homem: só ele e as coisas. Família? Amigos? Comunidade? Deus? Não! Ele só conversa com ele e com coisas, com seus bens. Solidão!
É um homem doente, doente de avareza, de cupidez, da ânsia de ter sempre e cada vez mais como que de algo medrosamente estivesse fugindo ou como se desesperadamente procurasse algo ou uma forte emoção. É um homem enfeitiçado. Isso mesmo! Todo objeto, todo valor, qualquer propriedade pode se tornar um fetiche (feitiço). E torna-se fetiche quando você atribui poder sobrenatural, sobre-humano, fantástico, extraordinário, maravilhoso: uma potência que livra da morte. O fetiche é quase o saborear antecipadamente de um outro mundo. A emoção que desperta o fetiche é de compulsão, que significa ser arrastado, dominado e escravizado por aquilo que se tornou “fetiche” (posses, bens, beleza, inteligência, etc.). Para se libertar dos “bens-fetiche” não bastam exortações normativas, pois fazem parte daqueles demônios que somente com oração e jejum se mandam embora. Não esqueçamos a frase: “É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha....”
- “Deus, porém, lhe disse: ‘Insensato! Nesta noite ainda exigirão de ti a tua alma, a tua vida (Aquela vida que foi gastada e consumida imolada às coisas). E as coisas, que ajuntaste, de quem serão?’ Assim acontece ao homem que entesoura para si mesmo e não é rico para Deus” (vv. 20-21).
Ser rico para Deus. Quando uma pessoa só vê a si e seus bens, nunca verá o que Deus e os outros podem mostrar-lhe, jamais será enriquecido pelo amor e olhar do outro, jamais se dará conta que os bens deste mundo podem facilitar o nosso encontro e amizade deixando de ser motivo de disputas. Será uma pessoa muito “mesquinha”. Ver-se-á sempre pela metade, viverá pela metade. De fato, não vive, mas imagina viver em um futuro que nunca viverá: “E depois direi – verbo no futuro - à minha alma: ó minha alma, tens muitos bens em depósito para muitíssimos anos; descansa, come, bebe e regala-te”). Vivamos em comunhão, em família, em Igreja!
Triste fim: o homem da parábola jamais usufruirá dos bens desta terra. Não existe banquete solitário: a única forma de usufruir dos bens deste mundo que Deus nos deu é “degustá-los” em comum, em partilha.
Triste fim: deixará uma herança que só servirá para litígios. Fez mal a si e deixará o veneno da cupidez para seus herdeiros. Não é por acaso que o nosso mundo caminha marcadamente cheios de golpes, roubos, corrupção, disputas, intrigas, discórdias....
A melhor herança a deixarmos aos nossos filhos e filhas é a saudade da casa do Pai, é fazê-los sentir-se “filhos”, “filhas” de Deus, irmãos da humanidade, amantes do trabalho.
Que a Santa Eucaristia nos dê tudo aquilo que o homem da parábola buscava: descanso enquanto já vivemos salvos no amor do Senhor por nós; alimento porque não só sobrevivemos, mas vivemos de verdade; bebida e alegria porque não estamos a sós, vivemos amorosamente na companhia do Senhor e de tantos irmãos e irmãs.