Tamanho do Texto:
A+
A-

TESTAMENTO

Publicado por Frei João de Araújo Santiago | 19/03/2016 - 14:58

TESTAMENTO

Os Evangelhos narram, acima de tudo, os últimos dias de Jesus nesta terra e sua ressurreição. Mas, antes de escreverem estes dias, os evangelistas fizeram longas introduções. Com isso queremos afirmar que a Semana Santa traz para nós as passagens mais densas e importantes da vida de Nosso Senhor. Diríamos que temos uma espécie de Testamento de Jesus filho de Maria. Testamento não só de palavras ditas, mas também de gestos significativos (o partir do pão, a busca da vontade do Pai, o tomar a cruz, etc.).  Tal testamento resume a vontade de Jesus com a esperança que seus discípulos continuem a obra começada.

Meditemos algumas passagens de Lucas 23, 1-49.

Então, tomando um cálice, deu graças e disse: «Tomai e reparti entre vós, fazei isto em memória de Mim».  Com um gesto e com um pão a ser partilhado e um vinho a ser bebido, Jesus resumi a sua vida: “eu me fiz alimento” Vocês também se tornem pão e vinho, alimento.  Eis o testamento de Jesus. O que você responderia se alguém algum dia perguntasse a você: “qual o gesto que resumi sua vida? ”.

Levantou-se também entre eles uma questão: qual deles se devia considerar o maior?  O maior entre vós seja como o menor e aquele que manda seja como quem serve. «Orai, para não entrardes em tentação». Nós rezamos por tantas coisas. Aqui Jesus nos ensina a rezar para não cair na tentação de criar divisão, ciúmes, invejas, intrigas, opressão que acontecem quando cada um se mete a querer ser maior que o outro.

Então apareceu-Lhe um Anjo, vindo do Céu, para O confortar. Anjo na Bíblia é um mediador, é uma mediação. Pode ser também uma iluminação interior fruto da minha oração. Jesus foi iluminado e confortado na oração: entendeu que a doação de sua vida traria o germe, a semente de um mundo novo: a vitória do perdão sobre o rancor, a vitória do amor sobre o ódio, a vitória da vida sobre a morte, da confiança sobre o desespero.

Entrando em angústia, orava mais instantemente e o suor tornou-se lhe como grossas gotas de sangue, que caíam na terra. - A agonia de Jesus e o seu suar sangue: é a expectativa diante de uma batalha a ser afrontada. Todos nós passamos por situações que exigem tudo de nós, todos os nossos recursos humanos e espirituais. Quanta “luta” exige reconhecer um mal feito, por exemplo. O suar de sangue ainda revela o quanto concentrado estava Jesus em afrontar o Inimigo. Jesus sabia que venceria e assim vai para o “ringue”. Você está preparado para as batalhas da vida: contrariedades, injustiças, tentações, desafios vários, perdas de coisas e pessoas?

Depois de ter orado, levantou-Se e foi ter com os discípulos, que encontrou a dormir, por causa da tristeza. Disse-lhes Jesus: “Porque estais a dormir? Levantai-vos e orai, para não entrardes em tentação». - Oração. Acima de tudo a oração consiste em manter o centro das decisões (o coração) em adesão às propostas de Deus reveladas a nós por Jesus Cristo. Jesus nos adverte: se nossa oração for pouca ou de baixa qualidade certamente cairemos e caindo iremos navegar por rotas que nos levarão para longe e distante do gáudio, da alegria, da pujança da vida.

Ainda Ele estava a falar, quando apareceu uma multidão de gente. Ao verem o que ia suceder, os que estavam com Jesus perguntaram-Lhe: «Senhor, vamos feri-los à espada? » E um deles feriu o servo do sumo sacerdote, cortando-lhe a orelha direita. Mas Jesus interveio, dizendo: «Basta! Deixai-os». E, tocando na orelha do homem, curou-o. - Jesus cura um adversário (aquele que faz o que considero errado, mal), pois o cristão não tem inimigo. Devemos lembrar que Jesus cura alguém que o levava injustamente para ser “preso”. Aqui só nos resta meditar. Só Deus poderia nos ensinar isso: fazer o bem e tirar o sofrimento a quem nos pode, a qualquer momento, nos ferir. Para Jesus o drama da vida não se enquadra somente nas vicissitudes dos homens. Para além de nossas ações e das ações dos nossos amigos e adversários, há o Senhor do céu e da terra que tem o poder de tecer um justo final para o enredo da vida de cada um.

... uma criada, fitando os olhos nele, disse: “Este homem também andava com Jesus». Mas Pedro negou: «Não O conheço, mulher». ... O Senhor voltou-Se e fitou os olhos em Pedro. Pedro blasfema contra Jesus. Jesus olha a Pedro, olhou dentro dele como que dizendo: “sei que gostas de mim, sei que foste o único a vir até aqui, passando pelo perigo de ser reconhecido. E no meio do perigo, tiveste medo...”.  Pedro amava a Jesus, mesmo não conseguindo segui-lo até o fim por pura fragilidade e medo”.

Ao ver Jesus, Herodes ficou muito satisfeito. Havia bastante tempo que O queria ver, pelo que ouvia dizer d’Ele, e esperava que fizesse algum milagre na sua presença. Fez-Lhe muitas perguntas, mas Ele nada respondeu. ... Herodes, com os seus oficiais, tratou-O com desprezo e, por troça, mandou-O cobrir com um manto magnífico e remeteu-O a Pilatos. - Herodes debocha, destrata, humilha e julga a Jesus como um zero a esquerda. A mensagem é: para a ordem deste mundo (Herodes tinha assassinado sua esposa Mariana e mandou degolar dois de seus filhos. Mandou matar todos os meninos menores de dois anos, dois anos após o nascimento de Jesus) Jesus não vale. E de fato Jesus jamais corroboraria tudo que Herodes tinha feito…. Jesus não serve ao sistema de Herodes. Herodes, no entanto, queria milagres. Cuidemos de não querer reduzir a Jesus a um fantoche, a um fazedor de milagres. A procura por Jesus deve ser primeiramente por interesse a acolher a Palavra. A Palavra se tornará luz para a vida, e assim pautaremos nossa vida no bem. O perigo há! Perigo de “usar” Jesus para satisfazer meus caprichos, meus prazeres, minhas perversões. A Palavra nos fere e choca, nos convida à saída de si, à superação do nosso egocentrismo e egoísmo. Herodes só queria milagres, não queria a Palavra.        

Levavam ainda dois malfeitores para serem executados com Jesus. ...  «Jesus, lembra-Te de mim, quando vieres com a tua realeza». Jesus respondeu-lhe: «Em verdade te digo: Hoje estarás comigo no Paraíso». – Como verdadeiro pão, Jesus, até no último instante, alimenta de esperança e salvação aquele condenado. Foi o primeiro ser humano salvo e apresentado ao Pai por Jesus. 

Neste Domingo de Ramos a Igreja lê Lucas. Lucas mostra um Jesus que vai viver sua paixão perdoando a todos. Podemos dizer que em Jesus havia uma pulsão que o levava a dizer palavras como estas: “Tenho um outro alimento: fazer a vontade do Pai”; “Ninguém tira a minha vida: eu a dou livremente”; “Tenho um batismo – a oferta de si em morte de cruz – e como estou angustiado até que não chegue a hora”. Esta era a paixão de Jesus: realizar aquela pulsão de amar, de entregar a vida, de salvar todo ser humano. Seu sofrimento maior teria sido não poder realizar tal pulsão. Jesus poderia ter envelhecido, morrer de morte natural, mas teria sido infeliz, pois não teria vivido a paixão, a oblação de si. De onde terá vindo essa pulsão tão vibrante que não temeu nem as atrocidades de uma crucificação? Veio do seio da Santíssima Trindade. Jesus revela o que há entre o Pai e o Filho. Jesus revela que o princípio da criação é boa e é entrega de si. Deus é amor, diz São João. Deus é entrega de si desde toda a eternidade: o Pai se entrega ao filho sem reservas e o Filho retribui com a mesma entrega de si.

Dizíamos que Lucas narra um Jesus que perdoa a todos. Os discípulos permanecem fiéis a Jesus nas provações (22,28); no Getsemani dormem só uma vez e não três vezes (22,39-46) e é um sono de tristeza, não de indiferença; Pilatos tenta livrá-lo três vezes (23,13-25); O povo sofre por tudo que acontece (23,27) e até um dos dois ladrões é tido como bom (23,39-43).

Em Lucas Jesus se preocupa de todos: cura a orelha do servo (22,50-51), se preocupa pela sorte das mulheres (23,28-31), perdoa os seus carrascos (23,34) e promete o paraíso ao ladrão arrependido (23,43).

Jesus em Lucas é aquele que entende os seus malfeitores. Agem assim porque vivem nas trevas, do contrário não poderiam agir assim. Agem assim porque são zangados? Nervosos? Inquietos? Perturbados? Não conhecem a misericórdia? Não escutam o outro?

Jesus os perdoa não porque seja justo o que fazem, mas porque são cegos, trocam o mal pelo bem e o bem pelo mal; creem de prestar culto a Deus e matam seu Filho; creem de saber e vivem na ignorância

Sobre o autor
Frei João de Araújo Santiago

Frade Capuchinho, da Província Nossa Senhora do Carmo. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Mestre em Teologia Espiritual. Tem longa experiência como professor, seja no Brasil, como na África, quando esteve como missionário. Por vários anos foi formador seja no Postulantado, como no Pós Noviciado de Filosofia. Atualmente mora em Açailândia-MA. Já escreveu vários livros e muitos artigos.